O PROCESSO EDUCATIVO DE MULHERES NO CAMPO PARA A MOBILIZAÇÃO DO DIREITO HUMANO A ALIMENTAÇÃO ADEQUADA

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Oral
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Resumo

As leis direcionadas aos Direitos humanos foram constituídas para orientar a elaboração, implementação e monitoramento de políticas públicas com a finalidade de reduzir as desigualdades, gerar responsabilidade da parte dos governos por suas obrigações, e focam a atenção nos mais vulneráveis. A inclusão dos direitos humanos em ‘contratos sociais’ é retirada das elites pelas lutas populares, geralmente em situações de ruptura da coesão social, em que a opressão e a discriminação são reveladas nitidamente (VALENTE, 2014). As Diretrizes de 2004 da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) sobre o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) tiveram um papel fundamental como documento tomado por Estados-Membro, sobre como operacionalizar um direito econômico, social e cultural. Porém, as Diretrizes falharam em não ressaltar as demandas de movimentos sociais pela soberania alimentar e pelo reconhecimento pleno dos direitos das mulheres, deste modo, não enfrentou a concentração crescente da riqueza e do poder político e econômico (VALENTE, 2014). O Direito Humano à Alimentação Adequada é indispensável para a sobrevivência. O direito de todos à alimentação adequada e o direito fundamental de toda pessoa a estar livre da fome são pré-requisitos para a realização de outros direitos humanos. No Brasil, desde 2010, este direito está assegurado entre os direitos sociais da Constituição Federal, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 64, de 2010. Contudo, o direito à alimentação adequada e o direito de estar livre da fome estão longe da realidade de muitas pessoas. Os conceitos de Direito Humano à Alimentação Adequada e de Segurança Alimentar e Nutricional vem sendo incorporados em várias estratégias de desenvolvimento social e tem sido um caminho para modificar essa situação. (ABRANDH, 2013) A Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) é um conceito que agrega várias dimensões do processo da alimentação: fala de acesso à qualidade e quantidade de alimentos, condições de saúde e de saneamento em que se vive, refere-se também à garantia de todas as pessoas terem seu direito à alimentação adequada respeitado sem detrimento a outros direitos. A SAN se dá dependendo das particularidades das pessoas: pobre ou rico, homem ou mulher, branco ou negro, morador da cidade ou do campo, entre outros. Um aspecto específico das relações entre as questões de Gênero e a SAN é uma sobreposição entre identidade de gênero e a invisibilização do trabalho das mulheres no campo da alimentação. (ROCHA,2013) A efetivação plena dos direitos humanos das mulheres é fundamental para a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada para todos e todas. Apesar dos progressos que mulheres conquistaram em relação à condições passadas, a maioria delas, ainda hoje, são submetidas a diversas categorias de discriminação e violência estruturais, nos níveis social, comunitário e doméstico. Uma dimensão da violência imposta a mulheres, no campo da alimentação, é que elas são reduzidas a seus papéis como mães e provedoras primárias da segurança alimentar e nutricional. Quando as demandas de mulheres não são consideradas de forma apropriada, as políticas e programas tendem a sobrecarregá-las com ainda mais responsabilidades. Assim, promover plenamente os direitos das mulheres é central, pois grande parte da má nutrição de mulheres, bebês e crianças no mundo de hoje é consequência direta da violência e discriminação estruturais contra mulheres. Estudos recentes indicam que, quando elas se empoderam, aumentam a autoestima pelo apoio mútuo e enfrentam violações juntas, como mulheres. (VALENTE, 2014) Na construção de processos educativos, o MultiplicaSAN, um projeto de extensão do departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde da Universidade de Brasília, visou promover a formação de multiplicadoras sociais em SAN/DHAAS para a construção de uma cultura de direitos na sociedade, que atribua significado social e político à alimentação adequada e saudável. O curso ocorreu de março a junho de 2018 em 6 encontros de 8 horas/aula. O curso foi elaborado com base no “Caderno metodológico para formação de multiplicadores em SAN/DHAAS”, com adaptações para a experiência local, que o próprio caderno permite e incentiva, dialogando com o referencial da educação popular de Paulo Freire. O grupo formador foi constituído de mulheres pesquisadoras com ou sem vínculo direto, alunas extensionistas e professora do departamento de Nutrição da Universidade de Brasília. E o público sujeito foram mulheres de Colinas do Sul– Goiás/Brasil, entre elas, donas de casa, merendeiras, técnicas de saúde, funcionárias de mercado, assistentes de limpeza, entre outras. Com base na educação popular e pedagogia da cooperação, a proposta inicial foi apresentada e acordada entre o grupo formador e o público sujeito, as regras foram escritas em conjunto e consenso do que era importante para todas e para o bom andamento das aulas, deixando claro que tais regras eram flexíveis e passíveis de mudança de acordo com a necessidade da situação. Assim, antes de cada encontro, juntas liam os acordos para verificar se naquele momento o proposto ainda acolhia a todas. Tiveram acordos que mudaram durante o percorrer do curso, como o uso dos telefones, que antes estavam proibidos, porém percebeu-se que as mulheres tinham demandas vindas da família, pautaram isso e o novo acordo que permitia o uso do celular foi acolhido. Houve mudanças de datas e horários dos encontros e nos lanches propostos, a partir da demanda de uma das participantes, que era diabética. Essa simples proposta metodológica de construir os acordos em conjunto foi importante e já trouxe voz e participação no desenvolvimento do curso por parte das participantes. Seguindo o cronograma do curso, as aulas pautaram a história da segurança alimentar e nutricional, o sistema alimentar, os tipos de circuitos agroalimentares, direitos sociais, direito humano a alimentação adequada, intersetorialidade, violações de direitos, desafios, enfrentamentos e potencialidades na construção de competências, noções e acesso a políticas públicas, democracia e cidadania. Ao final do curso foi estabelecido um trabalho de conclusão, onde elas apresentaram uma situação de violação de Direito Humano à Alimentação Adequada e propostas de enfrentamento a esta situação. Foram apresentações que surpreenderam as expectativas, trouxeram situações desde a dificuldade de acesso à saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), desassistência na distribuição da cesta básica, o impacto do lixão da cidade na segurança alimentar da comunidade, a escassez da água devido à seca na cachoeirinha da cidade, dificuldade de transporte e escoamento da casa de farinha do município, problemas na alimentação escolar, e até a queda de uma ponte, que inviabilizou o transporte de produtos dos agricultores. Nos enfrentamentos, os grupos mostraram a complexidade das soluções para as situações problema, perceberam a rede sistêmica dos diferentes problemas apresentados, contemplaram os mecanismos de exigibilidade aprendidos no curso, mostraram a intersetorialidade no âmbito das ações para se alcançar a SAN, como também apontaram soluções práticas como a criação de cooperativa de catadores de resíduos sólidos para erradicação do lixo, trazendo geração de renda, formações de educação ambiental local e turística, criação de COMSEA municipal, hortas escolares, mobilização com o conselho de alimentação escolar, articulação com as secretarias municipais, entre outros. Ao final das apresentações, foi realizada a mística de formatura e abrimos para as falas de avaliação do curso. Neste momento, e também em momentos mais informais, como nos intervalos, horário de almoço, onde a equipe promotora e as participantes tiveram trocas para além do conteúdo, foram muito importantes para que emergisse a dimensão da autopercepção de cada uma durante o curso. Algumas participantes relataram que os Encontros eram momentos de passear, socializar e sair de casa, outras estavam acompanhando a mãe ou a filha, e preferiam estar ali aprendendo algo diferente a ter que ficar na rotina doméstica. Uma das participantes, relatou que pensava que era um curso onde iriam aprender a cozinhar, e como ela gosta muito de fazer comida, se inscreveu, mas viu na primeira aula que não seria isso, e quis continuar pois percebeu que estava aprendendo a reconhecer e lutar pelos seus direitos. Tiveram mulheres que relataram que o curso trouxe novas perspectivas e expectativas no campo da educação, que as estimularam a voltar a estudar. Foi interessante perceber também o desenvolvimento durante o curso, algumas iniciaram tímidas e sem segurança em suas falas e no decorrer do curso sentiam-se mais a vontade para se expressar, contribuíam com convicção sobre os temas, e visivelmente passaram a se enxergar como promotoras de direitos. Nessa experiência foi possível vivenciar de perto o papel que a mulher do campo ocupa no dia a dia, e suas responsabilidades na produção de alimentos, por meio de hortas em suas casa, fabricação de produtos alimentícios artesanais, como doces, pães e quitutes e que elas são as principais envolvidas com as questões de educação e saúde dos filhos e parentes. Assim, percebeu-se o acúmulo de conhecimento e experiência em áreas estratégicas para a promoção da SAN, em suas casas, nos centros de saúdes e escolas, como também em espaços informais que visivelmente atuam como lideranças carismáticas, entretanto, seu conhecimento e importância como sujeitos políticos são pouco valorizados e muitas vezes não reconhecidos, por elas mesmas e pela sociedade. Por isso, a importância de trabalhar a aprendizagem de base popular, onde os sujeitos e o seu meio são o foco da troca de saberes e essa troca se dá no processo de formação. Para além do conteúdo direto ligado ao Direito Humano à Alimentação Adequada, mesmo sem o grupo formador saber que o público sujeito seria constituído por mulheres percebeu-se que isso foi um fator de aproximação, reconhecimento e pertencimento. E o grupo formador, mesmo sem a intenção explícita, abordou durante todo o tempo as questões de gênero no campo da Segurança Alimentar e Nutricional, e isso só foi percebido abertamente a partir das avaliações das aulas e dos relatos. Foi a partir destas reflexões que o grupo formador percebeu que, por cada uma carregar dentro de si fragmentos de luta e emancipação da mulher, por causa do acesso a processos libertários feministas, tais assuntos estavam presentes nas falas, nas abordagens e até mesmo na postura das aulas, e foram fundamentais para o resultado surpreendente que este curso obteve. A princípio essa abordagem não era objetivo do curso, e a partir dessa experiência, corroborada por estudos e discussões centradas no DHAA, politicas públicas e gênero, viu-se que o reconhecimento da vivência nas camadas do campo da SAN e do DHAA deve ser seguido da valorização do papel da mulher e da viabilidade urgente da sua participação social, no acesso a mecanismos de exigibilidade e também na construção de políticas públicas. E os processos educativos, de base popular revelam-se como ferramenta propulsora de reconhecimento das mulheres como sujeitos políticos nas lutas de gênero e desafios da Segurança Alimentar e Nutricional. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS LEÃO, M. O direito humano à alimentação adequada e o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. – Brasília: ABRANDH, 2013. ROCHA, C. Segurança Alimentar e Nutricional, perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. – Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2013. VALENTE FLS. Rumo à Realização Plena do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas- Revista Development 57 (2), dez 2014. p. 155-170. Traduzido para o português em maio de 2016 por Daniela Calmon, a pedido da FIAN Brasil.

Instituições
  • 1 Universidade Federal da Paraíba
  • 2 FIAN Brasil
  • 3 Universidade de Brasília
Eixo Temático
  • Tema 1 - Direito Humano à Alimentação Adequada
Palavras-chave
DHAA
SAN
GÊNERO