Carta do 5º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão da Saúde

Este congresso foi concebido como um espaço de debates, produção e trocas de conhecimento crítico no campo da política, do planejamento e da gestão de saúde que potencializam o aprimoramento do Sistema Único de Saúde (SUS) no que é de interesse público, portanto de e para todas, todos e todes. Apesar de toda a luta pelo direito à saúde como direito de cidadania num sistema público universal de saúde, e de todas as imensas conquistas alcançadas pelo SUS nestas décadas, sabemos que a saúde não chega igual para todas as pessoas, em prejuízo das que vivem de seus trabalhos, habitam nas periferias, negras, indígenas, com deficiência, moradoras nas regiões norte e nordeste entre outras vulnerabilizações. Assim, este congresso teve como premissa que os problemas e as condições que geram iniquidades em saúde precisam ser enfrentados desde a sua raíz, o que requer resistência e insurgências.

Foram realizados quatro Grandes Debates, 52 Mesas-Redondas. Foram 346 trabalhos aprovados distribuídos em 63 sessões de Comunicações Coordenadas; 1719 trabalhos distribuídos entre as 130 sessões de Rodas de Conversa; 24 trabalhos em três sessões de produção artística que trouxeram em perspectiva questões de alta relevância para as agendas da saúde do País, a partir do tema do congresso “Políticas, saberes e práticas: resistência e insurgência no enfrentamento das iniquidades em saúde”. Paralelo a estas atividades, espaços comuns de solidariedade, diálogo, cultura e confraternização ampliaram a potência do evento

No total, 2.569 pessoas participaram ativamente das diferentes atividades desenvolvidas que, para além de qualificarem o processo de problematização de problemas, vislumbraram caminhos insurgentes possíveis para as crises que se expressam e para as que se anunciam.

Os debates problematizaram caminhos insurgentes possíveis para as crises que vivemos. Crise esta que é sanitária, ambiental/climática, de insegurança alimentar, disputa pela terra e pela água, têm resultado em grandes migrações populacionais, brutal piora das relações de trabalho, violência, acirramento das disputas geopolíticas entre norte global e a grande maioria do mundo, guerras e do aumento da desigualdade interna nos países.

Esse contexto decorre de um modelo capitalista de desenvolvimento socioeconômico extrativista, explorador e predatório a ponto de rumar à destruição do planeta. Esse modelo concentra o poder em poucas grandes corporações internacionais que disputam os destinos das Nações e seus orçamentos públicos para manter o que é de interesse privado. Foram denunciadas as reiteradas falácias de que o SUS não caberia no orçamento público, que o projeto original do SUS precisaria ser revisto ou que o SUS e o saneamento deveriam ser privatizados. Todos esses discursos são parte do boicote que o SUS enfrenta desde seu nascedouro. Ao qual resistimos e contra os quais nos insurgimos.

O congresso deu visibilidade e valorizar os saberes dos povos originários, quilombolas, movimentos sociais, população negra, entendendo que são fundamentais para fortalecer uma visão de mundo que sustenta que a saúde e a vida só são possíveis se integradas ao ambiente, à natureza, à alegria de viver. Trata-se de uma visão de mundo absolutamente diferente da vigente nas sociedades capitalistas patriarcais, onde o ódio às pessoas LGBTQIAPN+, o capacitismo, o racismo e a misoginia para com as mulheres que resulta no agravamento das violências, das taxas de feminicídio e dos obstáculos à realização de aborto legal no SUS imperam, numa visão de mundo que tão bem serve ao capitalismo, ao ultraneoliberalismo e à extrema direita. Nessa conjuntura, a quase totalidade da população, comumente denominada de minorias, por serem minoria no poder, é vulnerabilizada, sendo duramente atacada por processos vulnerabilizadores que repercutem na sua saúde envolvendo classe raça, gênero, deficiência/capacidades, grupos etários. O congresso reconheceu essa luta como parte fundamental da equalização dos direitos das pessoas mais vulnerabilizadas. Essa é uma luta também pelo direito universal à saúde para toda a população, isto é, como direito de cidadania para todas, todos e todes brasileiros.

O congresso debateu também a saúde global, entendida como uma arena de disputa entre projetos neocolonialistas e emancipatórios. Enfatizou-se a importância de defender abordagens baseadas na descolonialidade - como respeito aos conhecimentos e às práticas dos povos subalternizados e recontextualização/reformulação crítica dos conhecimentos e práticas originados em povos colonizadores - e na determinação social e ambiental do processo saúde-doença, combatendo as abordagens tecnicistas baseadas na concepção biomédica e mercantilista da saúde. Identificou-se que essa disputa ocorre em um cenário de transição geopolítica, em que países que ocupavam posições imperiais entram em declínio e se sentem ameaçados pela possibilidade de uma nova era multipolar, reagindo de forma belicosa a ponto de intensificar conflitos regionais e colocar no horizonte a possibilidade de uma nova guerra mundial, com prováveis efeitos devastadores.

O congresso discutiu ainda a questão da saúde digital, identificando potencialidades, riscos e ameaças. Se, de um lado, o uso de tecnologias digitais de informação e comunicação pode contribuir para a melhoria do acesso e da qualidade da atenção, da vigilância, da educação e da pesquisa em saúde, por outro, pode gerar desigualdades e iniquidades, iatrogenias, desinformação, alienação e enfraquecimento da soberania nacional. Para evitar esses riscos e essas ameaças e tornar efetivas as potencialidades positivas, foi recomendado lutar para democratizar o processo de decisões sobre o fomento à pesquisa e ao desenvolvimento tecnológico, regulação da indústria de tecnologias digitais, com ampla participação social e compromisso com o desenho e a produção de tecnologias adequadas às necessidades de saúde da população.

O Congresso simbolizou também a parceria da ABRASCO com o Ministério da Saúde e de certa forma a gestão federal do SUS com a Ciência. Debatemos a retomada de políticas importantes como a expansão da estrategia de saude da familia, revisão do modelo de financiamento da APS que antes era apenas produtivista e contracionista da rede, criação das equipes e-multi, reformulação do programa mais médicos, reorganização de estratégias de formação de recursos humanos incluindo o paradigma da equidade de gênero e raça, fomento às equipes de saúde bucal e reajuste financeiro dos repasses para diversos serviços e políticas. Entretanto, tal agenda positiva mantém baixa interlocução com os movimentos sociais. Ao mesmo tempo temos um cenário de subfinanciamento do SUS, o aumento expressivo das emendas parlamentares (EP) nas despesas federais, o que gera instabilidade, dificuldade de planejamento do sistema, com grande fragmentação da alocação de recursos. Além disso, há uma incerteza quanto aos efeitos da reforma tributária sobre a saúde. Essas questões se agravam no contexto das eternas e renovadas pressões sobre o governo federal para desvincular e reduzir os pisos constitucionais da saúde e da educação.

Para além da organização técnico-científica, com leveza e alegria, o evento no Ceará buscou trazer em perspectiva diferentes olhares transgeracionais do campo para demarcar caminhos possíveis no atual contexto brasileiro.

O congresso renovou o compromisso do campo PPGS com a luta pelo direito universal à saúde, de um sistema público e gratuito, uma vez que não há direitos sem mobilização permanente e por isso mesmo na reconstrução da equidade em saúde como princípio fundante do SUS. A área assumiu também o compromisso de finalização do plano diretor do campo de políticas, planejamento e gestão da ABRASCO. Por fim, cientes do cenário de crescimento da extrema direita fortalecida no Brasil e no mundo, é exigido dos movimentos sociais, da comunidade da saúde coletiva, da sociedade brasileira, unidade na resistência e nas insurgências em defesa do SUS e da vida.

Políticas, saberes e práticas: resistência e insurgência no enfrentamento das iniquidades em saúde! VIVA ABRASCO E VIVA O SUS

Fortaleza, novembro de 2024.