POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS DE TERREIROS ENQUANTO ESPAÇO DE MEMÓRIA ALIMENTAR

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Resumo

Os terreiros de Candomblé são parte do processo histórico de formação do espaço geográfico brasileiro e, parte deles, têm organicidade própria. Para Beatriz Nascimento (1989), os terreiros são os novos quilombos urbanos e, os integrantes deste grupo, possuem uma identidade definida, com formas próprias de organização social, além de ocuparem e utilizarem territórios e recursos naturais como condição para a sua manutenção religiosa, ancestral e econômica, utilizando-se de conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007). Esses espaços geográficos, onde se encontram os terreiros, são uma viagem ao passado por meio da manutenção dos hábitos culturais e ancestrais deste povo. O terreiro representa, sobretudo, a união entre a população negra e a sua ancestralidade. Dessa união, necessariamente, produz-se saúde (LOPES et al., 2006), o combate as iniquidades raciais e a Segurança Alimentar e Nutricional (SAN). O terreiro de candomblé, tal como o conhecemos, é a criação, nas condições adversas da escravidão, de uma nova instituição e de um novo modelo de culto, adaptado às circunstâncias encontradas no Brasil (SANT’ANNA, 2004). Os terreiros, sendo esses espaços comunitários de preservação e vivência a religiosidade de matriz africanas e afro-brasileiras (SILVA, 2007) oportunizam o acolhimento, trocas de saberes, afetos, valorização e reconhecimento dos diferentes signos e significados que versam pela identidade da população negra e seu pertencimento histórico, cultural, social e de promoção da equidade racial. A população negra se encontra em desigualdade nas oportunidades sociais e materiais, onde 82,3% da classe A é formada, majoritariamente, por brancos; o número de negros pobres é 2,7 vezes maior que o número de pobres brancos. A população negra se encontra excluída do sistema educacional, representando a maioria dos analfabetos, com maior evasão escolar e menor acesso às universidades públicas (BRASIL, 2010). Segundo o censo IBGE 2010 a respeito do perfil de extrema pobreza brasileira, no que se refere ao fator cor-raça, os dados sinalizam que 70,8% destas pessoas são pardas ou pretas. A população de auto declarados pretos e pardos no Brasil representa cerca de 54,9% (IBGE, 2016) dos habitantes do território brasileiro. Neste sentido, são as religiões de matriz africana que detém, dentro de suas comunidades, a maioria das populações negras que estabelecem relações afro diaspórica em sua construção civil, política, econômica, social e alimentar distintas. É nos terreiros que esses dados são problematizados e a população negra se encontra acolhida e pertencente (BRASIL, 2018), sendo esse espaço referência para avançar na implementação dos atos normativos públicos antirracistas a exemplo da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde (SUS) (BRASIL, 2006). Esta Política não apenas valoriza a medicina tradicional e complementar/alternativa, como também a Política Nacional de Saúde da População Negra (BRASIL, 2009), já que contempla as abordagens terapêuticas tradicionais (OMS, 2012), com destaque para a fitoterapia e terapias manuais/espirituais e preventivas que impulsionam o acesso à saúde (ALVES et al., 2009) em sua integralidade, além de compreender o racismo enquanto Determinante Social de Saúde e combater as iniquidades raciais. Os dados no monitoramento dos distúrbios nutricionais que levam em consideração o recorte racial, bem como a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) foram sendo melhor apresentados e compreendidos após a inclusão de políticas públicas destinadas ao tema. No entanto, após acontecimentos políticos recentes no país, pós 2016, as políticas públicas destinadas ao tema da SSAN foram estagnadas. A construção de materiais como o Guia Alimentar para a população brasileira (BRASIL, 2008; 2014) representam avanços significativos à políticas públicas, que versa pela alimentação compreendida como a relação de incorporar, por meio de determinados alimentos, os compostos essenciais para a manutenção da vida, perpassando as relações socioculturais, econômicas e, sobretudo, coloca a alimentação enquanto ato fundante das relações humanas e sociais. As iniquidades raciais, também são refletidas nos dados de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) (BRASIL, 2018). No Brasil, 11,5% da população negra vive em situação de insegurança alimentar grave, enquanto entre os brancos o percentual é de 4,2%. Quanto à alimentação, é na população de baixa renda que se verifica o menor consumo de alimentos considerados saudáveis para a prevenção de Doenças Crônicas não Transmissíveis (DCNT) (VALENTE, 2002). Os dados estão em acordo com os já identificados pela pesquisa “Mapeando o Axé – Pesquisa Socioeconômica e Cultural das Comunidades Tradicionais de Terreiro”, 2010/2011” e do I Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (2013-2015), onde se destacam a violação dos Direito Humano a Alimentação Adequada (DHAA) em decorrência do racismo. Nesta lógica, o trabalho pretendeu mensurar os marcadores de (in)segurança alimentar e tem como focos: analisar os dados acerca dos Determinantes Sociais em Saúde – DSS (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007) dos povos culturalmente diferenciados e, caracterizar os processos de produção e consumo alimentar e nutricional. Consiste em uma pesquisa de natureza exploratória, descritiva, com coleta de dados transversais, permitindo o levantamento de informações norteadoras, por meio de instrumento estruturado. Tendo como população e amostragem, os povos e comunidades tradicionais de terreiros localizados no Jardim Dom Fernando II, região metropolitana de Goiânia (GO). Para auxílio na aplicação dos questionários, além do pesquisador responsável pelo estudo e ligado a esfera pesquisada, foi importante a inserção da comunidade, não enquanto objeto de pesquisa, mas como autora da dialética em que coexiste os terreiros e a alimentação. Inicialmente foi abordado o conceito de SSAN, a fim de promover a percepção do espaço enquanto promotor, ou não, de SSAN. Foi utilizado o Formulário de Campo, intitulado “questionário socioeconômico e cultural de comunidades tradicionais de terreiros” (BRASIL, 2011) – adaptado pelo pesquisador para se relacionar mais intimamente com as individualidades do terreiro analisado, cujas diretrizes foram apontadas pela Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SESAN), construído em conjunto com a Secretaria de Avaliação e Gestão de Informação (SAGI), ambas Secretarias do então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) (BRASIL, 2011). Foram convidados para participar do estudo, os integrantes das comunidades tradicionais de terreiros, considerando os líderes religiosos ou cargos que assumiam tal função. Neste primeiro momento foi pesquisado o Ilê Asé Ojú Oyá Tí Rú Ofá, que se localiza no Jardim Dom Fernando II, terreiro/roça de religião afro-brasileira de Candomblé de nação Ketu. O estudo foi elaborado de acordo com as Diretrizes e Norma Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo seres humanos, da Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde; (CNS, 2012). Os potenciais participantes foram convidados a colaborar neste estudo, assegurada a privacidade durante a coleta dos dados. Os que concordaram em participar da pesquisa, preencheram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que também foi assinado pelo entrevistador responsável. Todas as informações coletadas permanecerão em sigilo sob a responsabilidade do pesquisador por, no máximo, cinco anos. Após esse período, os dados da pesquisa serão queimados e deletados. Os dados coletados foram registrados de modo a não poder identificar os partícipes, tendo os questionários apenas um número de identificação para o controle do pesquisador. Caracterizado pelos poucos estudos na temática da SSAN de povos e comunidades tradicionais de terreiros, é necessário a ampliação da pesquisa que correlacione os contextos da relação cultural e ancestral com a alimentação e seus DSS. Percebe-se, no complexo em que se organizam os terreiros de religiões de matriz africana, o desconhecimento do conceito de SSAN, apesar de reconhecerem as manifestações promotoras desta. Observou-se nestes espaços religiosos, uma relação mais bem definida de soberania alimentar nos aspectos de produzir alimentos não convencionais da região centro-oeste, tais como: Caruru, Amalá, Acarajé, Vatapá, Abará, Acaçá, Axoxô, Ebô, Ebôya, Ekuru, Ipeté, Omolocum, Deburu e entre outras preparações culinárias. Os pratos que mais se destacam, quando relacionado a quantidade de preparações por espaço/tempo, está o Amalá, Ebô, Acarajé e Acaçá. Que como analisados, representam grandes desafios para serem preparados pela dificuldade de se encontrar e adquirir os ingredientes essenciais a receita, como o camarão e a farinha branca. Ao mesmo tempo, é estabelecido uma relação de segurança alimentar pela introdução dessas preparações na dieta, tendo a segurança alimentar e nutricional enquanto controle higiênico sanitário menor destaque nestes espaços. Compreendendo que nas economias monetarizadas, como a brasileira, dispor de renda é fator preponderante para acessar os alimentos (CONSEA, 2010), e que esses conjuntos atravessam os critérios de raça/etnia, religiosidade e interações com sua memória ancestral. Somente então, possibilitando nova compreensão da realidade, pode-se mensurar, de forma mais aproximada e resolutiva, e desenvolver intervenções conforme as especificidades, bem como identificar a (não) implementação das políticas adequadas públicas e monitorar/acompanhar seu impacto (BRASIL, 2011; VALENTE, 2003). Nas pesquisas em desigualdades sociais em saúde, as desigualdades raciais ou étnicas são geralmente atribuídas a diferentes condições socioeconômicas ou valores culturais resultantes da pior inserção social desses grupos na sociedade. Entretanto, mesmo após controlar o efeito dessas variáveis, as diferenças permanecem demonstrando o efeito independente que o pertencimento a determinado grupo étnico ou racial pode ter sobre o estado de saúde (BARATA, 2009, p. 60). Além desses marcadores, destaca-se o importante papel dos terreiros na promoção da SSAN das comunidades nas quais estão inseridas, corroborando a necessidade de o poder público atuar, implementar as políticas públicas e prover a efetivação dos Direitos Humanos nos terreiros e em seu entorno. A sustentabilidade dessas culturas e a SSAN está relacionada a promoção da autonomia dos terreiros tanto quanto ao direito humano a alimentação adequada (DHAA) (BRASIL, 2011; CONSEA, 2017). Partindo destas considerações, espera-se que o levantamento de dados, com o recorte para os povos de comunidade tradicionais de terreiros, impulsione o mapeamento desses espaços e auxilie no desenvolvimento de ações afirmativas prol equidade racial e na caracterização de um perfil da SSAN. Além disso, espera-se que este estudo contribua para que se considere as existências dos povos de comunidades tradicionais de terreiros, os DSS e componham os banco de dados, para assim evidenciar os desafios e as possibilidades na implantação e/ou implementação de políticas públicas e na efetivação de Direitos Humanos, conforme as singularidades identificadas e, por meio de ações respaldadas pelo Guia Alimentar para população brasileira, o Marco em Educação Alimentar e Nutricional e a Política Nacional de SSAN. BARATA, R. B. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde. v. 27. 2009 BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília, DF. 2007 BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. Alimento: Direito Sagrado - Pesquisa Socioeconômica e Cultural de Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiros. Brasília, DF. 2011 BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE À FOME. 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Instituições
  • 1 FANUT/UFG
  • 2 SIASS IF Goiano/IFG
Eixo Temático
  • Tema 5 - Comida e cultura: os múltiplos olhares sobre a alimentação
Palavras-chave
Candomblé
População Negra
Candomblé