Favoritar este trabalho
Como citar esse trabalho?
Resumo

Resumo

O Kanban é um dispositivo para gestão de leitos que se apoia em dois eixos principais: o trabalho interprofissional e o uso intensivo de informação. Essa tecnologia de gestão do cuidado tem sido crescentemente utilizada para enfrentar a superlotação dos serviços hospitalares de emergência (SHE). Neste estudo, pesquisadores acompanharam durante dez meses a operacionalização do Kanban em vários setores de um SHE municipal. Suas observações, registradas em diários de campo, foram discutidas, em reuniões quinzenais, pelo coletivo de pesquisadores. O material empírico foi organizado a partir de duas questões centrais: Há mudanças nas “atribuições tradicionais” da enfermagem atuando no Kanban? Há transformações nas relações interprofissionais entre Medicina e Enfermagem na operacionalização do Kanban? Observou-se forte adesão dos enfermeiros ao arranjo, pari passu com uma maior especialização e fragmentação do seu trabalho. Os diaristas assumem funções administrativas tradicionais da enfermagem, enquanto os plantonistas desenvolvem assistência direta aos pacientes. Os enfermeiros consideram que a decisão clínica continua centrada no médico, embora o Kanban propicie sua maior influência na decisão. A gestão de grande massa de dados clinico-operacionais pelos enfermeiros, central na operacionalização do Kanban, reforça sua autoridade profissional.

Introdução

Usuários dos serviços hospitalares de emergência (SHE) frequentemente apresentam insatisfação em relação à qualidade do atendimento, seja pelo tempo de espera, seja pela indisponibilidade de leitos, que acarreta a permanência em macas nos corredores. Neste cenário, intervenções que buscam melhorar a capacidade de acolher, identificar riscos e qualificar o cuidado nos SHE adquire grande importância. Diversos arranjos tecnológicos para gestão do cuidado têm sido utilizados no Brasil e induzidos pelo Ministério da Saúde. Dentre esses, destaca-se o Kanban, caracterizado como dispositivo para gestão de leitos que combina práticas de gestão de prioridades clínicas e ferramentas visuais que permitem a qualificação do cuidado, com forte ênfase em equipes multiprofissionais. Segundo a literatura internacional, a enfermagem de prática avançada em serviços de emergência, pode melhorar o acesso, diminuir a lotação e tempo de permanência, melhorar a qualidade do cuidado e aumentar a satisfação do paciente. Contudo, pouco se têm abordado sobre possíveis impactos e reconfigurações do Kanban nas práticas de profissionais de saúde, particularmente de enfermeiros, e nas relações interprofissionais.

Objetivos

Considerando o papel de destaque que a enfermagem assume nos serviços de emergência, este estudo teve como objetivo analisar as repercussões da operacionalização do Kanban no trabalho dos enfermeiros e nas relações interprofissionais, em particular entre esses profissionais e os médicos, em um Serviço Hospitalar de Emergência.

Metodologia

O estudo foi conduzido em um Hospital de Urgência Emergência, pertencente a uma rede municipal de saúde, na qual o Kanban está implantado. Adotaram-se estratégias metodológicas de orientação etnográfica. Os pesquisadores permaneceram no campo durante um ano observando a operacionalização do Kanban pelas equipes. Houve aproximação micropolítica à gestão e produção de cuidado, assumindo-se que esses processos se redefinem e redesenham à medida da sua utilização pelos atores institucionais. Os registros dos diários de campo foram analisados em seminários pelo coletivo de pesquisadores. Inicialmente, esse material foi organizado em três grandes blocos: relações internas à equipe; relações das equipes com usuários; e relações da equipe com a direção do hospital. A seguir, cenas selecionadas foram apresentadas e discutidas em dois seminários compartilhados dos pesquisadores com equipes do hospital, o que possibilitou a identificação de novas questões analíticas. Aprovado pelo CEP/Unifesp. Resultados e Discussão Apesar da avaliação bastante positiva em relação à incorporação do Kanban, surgiram críticas relacionadas à diferenciação entre as práticas dos “diaristas” e os “plantonistas”. Por via do Kanban ocorre uma fragmentação e diferenciação intraprofissional que, na literatura, enquadra-se sobre os profissionais-híbridos, considerados peças centrais para concretização do gerencialismo, na medida em que levam a racionalidade gestionária para o interior das culturas e identidades profissionais, ao invés de ser imposta a partir de fora. Essa reestruturação do trabalho da enfermagem tem produzido, também, sobrecarga e estresse no trabalho cotidiano. A responsabilização pela coleta, registro e sistematização de informação, em tempo real, dá à enfermagem um forte protagonismo e visibilidade na condução do dispositivo. Contudo, esses profissionais avaliam que esse fato não contribui para aumentar seu poder frente aos médicos, que ainda deteriam, em boa medida, a decisão clínica e condução do caso. Várias manifestações indicam insatisfação e conflitos na relação com os médicos; muitas vezes, sentem-se realizando as ações a serviço dos médicos, para facilitar seu trabalho.

Conclusões / Considerações finais

O Kanban tem provocado mudanças na prática profissional dos enfermeiros. Contudo persistem dúvidas sobre a produção de uma nova interprofissionalidade, quando se trata da relação com os médicos. Os próprios enfermeiros manifestam dúvidas quanto a essa produção, questionando se o Kanban tem contribuído para uma relação mais horizontal com os médicos de modo a influenciar mais na condução dos casos, ou para exacerbar a função de “secretários dos médicos”. O fato dos enfermeiros serem os “guardiões” das informações, e desempenharem um papel crucial para viabilizar sua utilização em tempo real, dá a esses profissionais mais visibilidade e reconhecimento de sua imprescindibilidade, quando se trata de aperfeiçoar o cuidado hospitalar. Podemos dizer que o Kanban tem produzido alguns movimentos no território da interprofissionalidade, mas ainda insuficientes para produzir mudanças mais radicais nas tão arraigadas relações de poder ainda dominantes no hospital.

Referências

1. Bradley VM. Placing Emergency Department crowding on the decision agenda. J Emerg Nurs 2005; 31:247-258. 2. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Portaria 3.390, de 30 de dezembro de 2013. Institui a Política Nacional de Atenção Hospitalar (PNHOSP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), estabelecendo-se as diretrizes para a organização do componente hospitalar da Rede de atenção à Saúde (RAS). Diário Oficial da União; 2013. 3. Crane J, Noon C. The Definitive Guide to Emergency Department Operational Improvement. Boca Raton: CRC Press; 2011. 4. Jennings N, Clifford S, Fox AR, O’Connell, Gardner G. The impact of nurse practitioner services on cost, quality of care, satisfaction and waiting times in the emergency department: a systematic review. Int J Nurs Stud 2015; 52(1):421-435. 5. Llewellyn S. ‘Two-way windows’: clinicians as medical managers. Organ Studies 2001; 22(4):593-623.

Eixo Temático
  • 4.2. Política, Gestão e Atenção Hospitalar