PROMOÇÃO DA SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR E NUTRICIONAL ATRAVÉS DO CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM ALIMENTOS NA EDUCAÇÃO DO CAMPO

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Relato de Experiência - Oral
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Resumo

Apresentação

A Soberania Alimentar pode ser compreendida como “o direito dos povos definirem suas próprias políticas e estratégias  sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito à alimentação para toda a população”, sendo baseada em pequenas e médias produções, respeitando as culturas e a diversidade dos modos de produção e reprodução social camponeses, pesqueiros e indígenas, com destaque para o protagonismo feminino na produção, comercialização e gestão (Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar, 2001). Já a Segurança Alimentar e Nutricional, de acordo com a Segundo a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), 

Art. 3º A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis (Brasil, 2006).

Nesse sentido, a Soberania Alimentar representa uma ampliação e complementação da Segurança Alimentar e Nutricional, em suas dimensões da disponibilidade, acesso, utilização biológica e estabilidade destas (Leão, 2013; Morais et al., 2020).

A agricultura familiar é um importante componente do setor produtivo brasileiro, que contribui efetivamente para a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional no país. De acordo com os dados do Censo Agropecuário de 2017-2018, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2019), 76,8% dos 5,073 milhões de estabelecimentos rurais do Brasil pertencem à agricultura familiar, contando com apenas 23% da área de estabelecimentos rurais, mas ocupando 10,1 milhões de pessoas, 67% do total de trabalhadores nos estabelecimentos agropecuários. Ela é responsável por 42% da produção do feijão, 48% do valor da produção de café e banana, 64,2% da produção de leite de vaca, 69% do abacaxi e por 80% do valor de produção da mandioca.

No estado da Bahia, diversos investimentos governamentais têm estimulado e impulsionado a produção, o beneficiamento, a industrialização e a comercialização de produtos da agricultura familiar e camponesa, do agroecossistema e da sociobiodiversidade, explorando o grande potencial deste setor (CAR, 2022). Entretanto, ainda existem várias lacunas e limitações a serem superadas para a qualificação das pessoas, estabelecimentos e produtos, e o acesso à Educação Superior, por meio da universidade pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada, é uma importante política pública que pode incidir efetivamente sobre esta situação, promovendo a superação destes desafios.

 

Objetivo

O presente trabalho tem como objetivo apresentar um relato de experiência que evidencia o impacto do Curso Superior de Tecnologia em Alimentos na Educação do Campo, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), na promoção da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) em diversos territórios de identidade do estado da Bahia.

 

Descrição da experiência

O Curso Superior de Tecnologia (CST) em Alimentos na Educação do Campo, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), é sediado no Centro de Ciência e Tecnologia em Energia e Sustentabilidade (CETENS), na cidade de Feira de Santana – Bahia. Conforme descrito em seu próprio nome, seu Projeto Pedagógico de Curso (PPC) se fundamenta nas Concepções e Princípios da Educação do Campo, tendo a Agroecologia, a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional e a Economia Solidária como referenciais para a produção e o processamento dos alimentos e a sua comercialização. O curso se distribui em 6 etapas, e cada uma destas é composta por dois tempos formativos, conforme a Pedagogia da Alternância: o Tempo Universidade (TU), que representa 80% da carga horária da etapa, com aulas presenciais em turno integral; e o Tempo Comunidade (TC), que compreende os 20% restantes da etapa, no qual os estudantes retornam às suas comunidades com um caderno de estudos – no qual constam atividades integradas e contextualizadas com a realidade produtiva local, permitindo que estes contribuam com as atividades de plantio, colheita, beneficiamento, processamento e comercialização dos alimentos – e os docentes do curso se deslocam até essas comunidades para acompanhamento das ações, que incluem o Diagnóstico Rural Participativo (DRP) e o Projeto de Intervenção (PI), realizado ao longo do curso.

Nesse sentido, o CST em Alimentos na Educação do Campo possui uma relação estreita com a agricultura familiar, dada a identidade deste curso desde a sua origem, visto que este foi criado a partir de uma demanda dos movimentos sociais, que indicaram a necessidade de formação das/os jovens do campo para a produção qualificada de alimentos, incluindo a produção nas agroindústrias da agricultura familiar e camponesa, de modo a reduzir o êxodo rural e a possibilitar a auferição de renda pelas famílias camponesas e suas organizações produtivas através do acesso aos mercados institucionais e convencionais, sem perder de vista seus desenhos organizativos e modos de vida e produção.

O CST em Alimentos é composto por alunas/os dos mais diversos territórios da Bahia, muitos deles oriundos de comunidades tradicionais quilombolas, incluindo os Territórios de Identidade: 1. Portal do Sertão, 2. Sisal, 3. Baixo Sul, 4. Chapada Diamantina, 5. Irecê, 6. Metropolitana de Salvador, 7. Piemonte da Diamantina, 8. Sudoeste Baiano, 9. Litoral Norte e Agreste Baiano, 10. Recôncavo, 11. Sertão Produtivo, 12. Vale do Jiquiriçá, e 13. Velho Chico. Essa abrangência contribui para a capilaridade de suas ações, seja durante a realização das atividades acadêmicas no Tempo Comunidade, seja através dos projetos de pesquisa e extensão, materializando a indissociabilidade destas com o ensino, por meio do acompanhamento e da qualificação de diversos empreendimentos solidários da área de alimentos, como associações, cooperativas, grupos produtivos e agroindústrias da agricultura familiar e camponesa.

 

Discussão

A atuação das/os discentes e docentes do CST em Alimentos na relação construída com as comunidades, em que estas ocupam a função de atores dos/nos processos e não de meros objetos/sujeitos de estudo, tem gerado diversos frutos, com impacto efetivo sobre os sistemas produtivos locais.

Um exemplo que pode ser apresentado é do grupo produtivo da Comunidade Quilombola do Quebra-Fogo, no município de Irará – BA. Este município possui a mandioca (Manihot esculenta Crantz) como sua principal cultura agrícola, e a produção de seus derivados é uma importante fonte de renda para a população rural. Entretanto, este processamento era realizado de modo muito insipiente e vulnerável, predominantemente informal, o que dificultava o acesso aos mercados. Em 2018, ano de início do CST em Alimentos, o grupo produtivo informal Sabores do Quebra-Fogo tinha 2 anos de existência e era composto por algumas mulheres que produziam bolachinhas de goma e bolos de mandioca em suas casas e comercializavam na feira livre ou entregavam à Associação Rural da Região do Quebra Fogo como uma estratégia para comercialização em mercados institucionais.

Nesse ano, foi realizado o DRP junto ao grupo, onde foi construído o Mapa da Comunidade e foram identificadas as instituições que possuíam relações fortes, fracas e conflituosas com esta, além dos principais problemas, suas causas e as consequências deles decorrentes, utilizando como ferramentas o Diagrama de Venn e a Árvore de Problemas (Verdejo, 2010). A partir deste diagnóstico, as/os estudantes construíram um Projeto de Intervenção, que foi executado pelo grupo de discentes naquele momento, ao qual foram integrados novas/os alunas/os da comunidade ao longo dos anos, enquanto outras/os estudantes se formaram; do mesmo modo, o acompanhamento das ações já foi realizado por diversas/os docentes do curso, e sempre é discutido junto ao Colegiado do Curso e ao Núcleo Docente Estruturante (NDE). Assim, a relação com a comunidade segue firme até os dias atuais, numa perspectiva de continuidade das ações, que deve ser a base da relação comunitária da universidade.

Dentre os importantes resultados deste acompanhamento, pode ser destacada a estruturação de uma unidade produtiva de derivados de mandioca, que processa diversos alimentos, como biscoitos, bolos, polvilho doce, goma fresca e aipim de mesa congelado e embalado à vácuo, com equipamentos adequados à produção agroindustrial. Destaque-se que essa qualificação da produção foi possível graças ao empoderamento das mulheres do grupo produtivo, além do apoio para a organização e participação em editais de apoio financeiro, além das diversas capacitações e oficinas de produção de alimentos, do suporte para a rotulagem e o desenvolvimento de novos produtos, que ainda se mantêm.

Experiências semelhantes de qualificação da produção em diversos outros empreendimentos da agricultura familiar e camponesa podem ser citadas, como: a qualificação da produção de derivados de licuri (Syagrus coronata) e de diversas frutas da Cooperativa Regional de Agricultores/as Familiares e Extrativistas da Economia Popular e Solidária (COOPERSABOR) / Associação Regional dos Grupos Solidários de Geração de Renda (ARESOL), em Monte Santo-BA; a conservação e produção de sementes crioulas e de raças nativas de animais de criação, na Associação Quilombola Comunitária Maria Quitéria (ACOMAQ), em Feira de Santana-BA;  a qualificação e diversificação da produção de geleias da Associação dos Pequenos Agricultores Município de Feira de Santana (APAEB-FEIRA), em Feria de Santana-BA; a qualificação da produção de polpas de fruta da Associação Comunitária de Matinha (ACOMA), em Feira de Santana-BA; a qualificação da produção de mel da Associação Rural Quilombola de Paus Altos, Santa Cruz e Adjacências (ARQUIPASCA), em Antônio Cardoso-BA; bem como o apoio no planejamento e na produção de diversos empreendimentos e agroindústrias que estão em fase de implantação em várias localidades do estado da Bahia, podendo ser citados os municípios de Irará, Feira de Santana, Cachoeira, Iraquara, dentre outros, impactando centenas de famílias.

Deste modo, fica evidente a atuação do CST em Alimentos na Educação do Campo para a promoção da SSAN, através da valorização das culturas locais por meio da produção da agroindústria da agricultura familiar e camponesa. Essa produção incide diretamente sobre as dimensões da disponibilidade e do acesso a alimentos saudáveis nos sistemas alimentares locais, no que se refere tanto à sua produção agroecológica, agroindustrialização por meio de técnicas em que não se utilizam aditivos artificiais e a comercialização em mercados convencionais e institucionais, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o que possibilita auferição de renda pelas agricultoras e agricultores familiares, também promovendo a sua própria segurança alimentar e nutricional através do fortalecimento de circuitos curtos de comercialização e do potencial de escoamento da produção para locais mais distantes, o que é possível graças à aplicação da tecnologia de alimentos.

 

Considerações Finais

Diante do exposto, é possível observar o impacto da universidade pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada para a promoção da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Através da experiência do Curso Superior de Tecnologia em Alimentos na Educação do Campo, fica evidente como a qualificação da produção de alimentos possibilita a sua inserção nos diversos mercados e modalidades de venda, fortalecendo a disponibilidade e o acesso a alimentos saudáveis e sustentáveis.

 

Referência bibliográfica:

BRASIL. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 18 set. 2006.

CAR - Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional. SDR - Secretaria de Desenvolvimento Rural do Governo do Estado da Bahia. Bahia Produtiva. 2022. Disponível em: <http://www.car.ba.gov.br/projetos/bahia-produtiva&gt; Acesso em: 02 jun 2024.

FÓRUM MUNDIAL SOBRE SOBERANIA ALIMENTAR. Declaração Final: pelo direito  dos povos a produzir, alimentar-se e a exercer sua soberania alimentar. Havana, Cuba, 2001. Disponível em: <http://neaepr.blogspot.com/2010/01/conceito-de-soberania-alimenta.html&…; Acesso em: 27 mai 2024.

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. SIDRA - Sistema IBGE de Recuperação Automática. Censo Agropecuário 2017: resultados definitivos. Rio de Janeiro: IBGE, 2019. Disponível em: <https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/censo-agropecuario/censo-agropecuari…; Acesso em: 02 jun 2024.

LEÃO, M. (org.). O direito humano à alimentação adequada e o sistema nacional de segurança alimentar e nutricional. Brasília, DF: ABRANDH, 2013.

MORAIS, D. C.; SPERANDIO, N., PRIORE, S. E. Atualizações e Debates sobre Segurança Alimentar e Nutricional. Viçosa, MG: Editora UFV, 2020.

VERDEJO, M. E. Diagnóstico Rural Participativo: guia prático de DRP. Brasília: MDA, 2010.

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Instituições
  • 1 Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
Eixo Temático
  • Produção e processamento de alimentos para sistemas alimentares saudáveis
Palavras-chave
Sistemas Alimentares Saudáveis
Agricultura Familiar
Processamento de Alimentos