Introdução
Parte importante da literatura sobre políticas públicas parte de um ponto comum, que envolve compreendê-las por meio da identificação dos atores envolvidos em sua definição e da reconstrução da estrutura de relações que os unem (Dubois, 2023). Os desdobramentos a partir desses pontos, no entanto, podem ser trabalhados de diferentes maneiras e, dentre as diversas noções para empreender esse tipo de análise, encontra-se a noção de campo, construção analítica consagrada por Pierre Bourdieu, que denota um espaço social no qual se “joga” segundo regularidades implícitas (Bourdieu, 1989).
Essa noção enfatiza o espaço social dos agentes, com trajetórias e propriedades sociais variadas, o que permite reconstituir a estrutura das relações que fundam determinada política - dentre as quais se incluem aquelas voltadas à questão alimentar - e compreender alguns de seus elementos, como sua orientação, seu estilo e seus instrumentos (Dubois, 2023). Por essa perspectiva, a política pública seria compreendida como o conjunto de relações, práticas e representações que contribuem para a criação de modos politicamente legitimados de regulação das relações sociais (Dubois, 2021).
Os processos contemporâneos de elaboração de políticas são cada vez mais complexos, envolvendo uma grande variedade de agentes que não podem ser facilmente circunscritos a um único campo, algo ainda mais evidente no âmbito da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. As configurações que esses sistemas de relações podem assumir se baseiam nas trocas, colaborações e disputas, que são estabelecidas bilateralmente entre a fração do espaço político-burocrático de um determinado domínio (funcionários públicos e agentes políticos pelo menos temporariamente encarregados de um determinado setor) e o seu campo correspondente (Dubois, 2023.
Grupos e indivíduos, governamentais e não governamentais, disputam uma forma específica de autoridade que consiste no poder de agir via legislações, regulações e medidas administrativas (Bourdieu & Wacquant, 1992). O microcosmo burocrático seria um espaço onde essa capacidade é disputada permanentemente por diversos indivíduos, no qual as lutas são moldadas a partir da distribuição de capitais entre os agentes da burocracia (Ventura, 2018).
A partir da abordagem de campo, seria possível enquadrar o Estado como uma teia complexa de relações sem fronteiras imutáveis pré-definidas. Olhar para o sistema de posições envolvido no “policy-making” forneceria uma visão mais concreta dos agentes que efetivamente intervêm nesses processos (Dubois, 2021).
O que a pesquisa propõe é olhar para as relações de força e de sentido entre o espaço político-burocrático e o campo correspondente, no caso, o da segurança alimentar e nutricional. Para isso, se utiliza das características sociais e da posição objetiva dos agentes, às quais são associadas aos interesses, maneiras de ver, práticas e tomadas de posição dos indivíduos (Dubois, 2023). Toma-se o campo burocrático como espaço privilegiado de observação, uma vez que lá reside a capacidade de agir em nome do universal diante da ausência de uma expressão natural do interesse comum – o que não significa considerá-lo apartado de seus campos próximos.
Objetivo
Em 2014, um documento publicado pela FAO apontava a experiência brasileira de combate à fome iniciada nos anos 2000 como um exemplo da situação na qual o problema da alimentação era colocado no centro da agenda política. O órgão apontava reduções significativas nos índices de insegurança alimentar do país e dizia que “as estruturas e capacidades” resultantes da governança de SAN, aliadas ao contínuo compromisso financeiro e político, colocariam o Brasil em “uma base sólida para proteger os avanços alcançados e enfrentar novos desafios” (FAO, 2014, p. 26). Todavia, oito anos depois, outro relatório publicado pela mesma organização indicava que a história havia tomado outro rumo (FAO, 2022), com o Brasil voltando ao Mapa da Fome.
Em situações como essa, de significativas alterações na situação alimentar da população, o que se observa no modo do Estado nacional de lidar com o problema? Com recurso à ideia de (des)continuidades nas políticas públicas (Maluf et al., 2021), utilizando a noção de “brecha” institucional (Pinton e Sencebé, 2019), em diálogo com a abordagem cognitiva de políticas públicas (Grisa e Porto, 2023) ou a partir dos modelos analíticos de desmonte de políticas públicas (Sabourin et al, 2020; Milhorance, 2022; Andrade et al., 2024), pesquisas anteriores abordaram essa questão no Brasil, mas sem um enquadramento sistemático a respeito das trajetórias e recursos mobilizados pelos agentes da burocracia.
Buscando, portanto, endereçar essa dinâmica a partir da abordagem de campos, a pesquisa busca responder a seguinte pergunta de pesquisa: como se dão as dinâmicas no campo burocrático em períodos de reconfiguração das ações do Executivo Federal no âmbito da segurança alimentar e nutricional?
Métodos
Por meio da Análise de Correspondências Múltiplas (ACM), buscamos “sintetizar quantitativamente dados categóricos (qualitativos) dispondo-os de maneira estrutural, multidimensional e relacional” (Klüger, 2018, p. 68). Então, foram solicitadas, de acordo com a Lei de Acesso à Informação, relações das pessoas que ocuparam cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) nas secretarias responsáveis pela política de SAN no período entre 2003 e 2022. Para os 216 indivíduos, foi realizada, inicialmente, uma ACM com 14 variáveis ativas contendo um total de 39 modalidades. Três rubricas compreendem essas variáveis: origem e trajetória educacional (14 modalidades), carreira no serviço público (13) e conexões extracarreira (12). Em síntese, as seguintes modalidades são utilizadas para construir o espaço social:
• Origem e trajetória educacional: Sexo (2); Formação (9); Titulação mais alta (3).
• Carreira no serviço público federal: Governo de Entrada (4), DAS (2), Tipo de Vínculo (3), EPPGG (2), ATPS (2).
• Conexões Extracarreira: Movimentos Sociais (2), Ensino e Pesquisa (2), Partido Político (2), Organismos Multilaterais (2), Serviços Públicos Locais de SAN (2), ONGs (2).
Adicionalmente, dados primários foram obtidos através de entrevistas semiestruturadas com agentes do campo burocrático e seus campos próximos. Essas entrevistas são baseadas em um roteiro elaborado a partir do referencial teórico e de elementos antecipados a partir de dados secundários. Foram realizadas 18 entrevistas, com agentes do serviço público, da academia e da sociedade civil organizada. É difícil desvincular esses papéis para especificar cada agente, mas 16 deles, pelo menos por algum tempo, estiveram no Governo Federal e 12 na SESAN. Procuramos abranger pessoas que atuaram em diferentes governos, com experiências também em outros ministérios afins e em diferentes níveis hierárquicos.
Resultados/Discussão
A princípio, foi obtido um conjunto de 326 nomes que ocuparam cargos de Direção e Assessoramento Superior (DAS) nos órgãos responsáveis pela política de SAN no período entre 2003 e 2022. Optando por reter apenas aqueles que tiveram passagens por níveis 3, 4, 5 ou 6, chega-se a uma lista de 297 indivíduos. Desse total, não foram encontradas informações básicas a respeito de 81 pessoas em fontes como Plataforma Lattes, LinkedIn, sites oficiais do Governo, ou mesmo em grandes veículos de imprensa. A escolha, então, foi por retirar esses indivíduos da relação de forma a evitar algumas distorções, ponderando que a ausência deles tende a não significar perdas em termos de distinções mais expressivas no espaço social. Para os outros 216 indivíduos, foi realizada a ACM com 14 variáveis ativas e 39 modalidades. Nesse exercício, os dois primeiros eixos foram retidos para intepretação, os quais representam 78% da variância acumulada.
O mapa dos indivíduos, quando assinalado pela variável suplementar “governo de entrada” mostra uma dispersão no que diz respeito a esse quesito.
No mapa das variáveis, é possível observar, no primeiro quadrante, um agrupamento marcado pelos capitais e trajetórias típicos da burocracia interna. No segundo quadrante, haveria um agrupamento que envolve características como formação nas áreas de Ciências Agrárias e Nutrição, bem como diferentes “trunfos” dos quais os indivíduos, a princípio externos à burocracia, se valem para acessar os cargos de DAS na SESAN, como as passagens por espaços como ONGs, Movimentos Sociais, Academia etc. No terceiro quadrante, haveria uma aproximação entre formações nas áreas de Gestão, Direito, Exatas ou Outras e conexão extracarreira do tipo Partido Político.
Passando pelos diferentes capitais ao longo do tempo, observa-se que, nos Governo Lula e Dilma, o capital cultural, do tipo educacional e acadêmico, se expressava principalmente em termos das categorias Humanas e Sociais, Ciências Agrárias e Nutrição, sendo possível reunir tipicamente em dois grupos: Ciências Sociais e Agrárias e Saúde & Nutrição. Nota-se ainda uma valorização da Nutrição durante o Governo Dilma, no sentido de maior recrutamento percentual de agentes com formação nesse campo do conhecimento. Ambos os governos também apresentaram presença de agentes com trajetórias importantes ligadas a ONGs, Movimentos Sociais, Organismos Multilaterais, e Serviço Público Local de SAN e áreas afins. Nota-se que, no Governo Lula, embora não fosse predominante, havia algumas conexões partidárias, o que praticamente desaparece no recrutamento feito no Governo Dilma. Também se observa, no governo Dilma, maior proporção de burocratas de carreira do que na gestão que o antecedeu.
No Governo Temer, em termos de capitais educacionais, as formações nas áreas predominantes nos períodos anteriores caem drasticamente, especialmente em Nutrição e Ciências Humanas. As trajetórias marcadas por experiências com ONGs, Movimentos Sociais e Organismos Multilaterais também se tornam mais raras, embora ainda presentes. Experiências em serviços públicos locais de SAN e áreas afins sofrem menor alteração, aparecendo em conexão com vínculos partidários, sobretudo pela entrada de diversos agentes ligados ao MDB do Rio Grande do Sul, que detinham passagens por Secretarias de Abastecimento do interior do Estado.
Já durante o período em que Bolsonaro esteve na Presidência, o recrutamento para os cargos de Direção e Assessoramento Superior praticamente ignorou agentes com formação nas áreas de Ciências Sociais e Agrárias e da Nutrição. Predominaram Direito, Gestão e Exatas. Outros capitais, como as passagens por ONGs, Movimentos Sociais e Organismos Multilaterais desapareceram, enquanto a proporção de vínculos com partidos políticos se manteve estável.
Os resultados indicam que o campo burocrático da SAN assumiu diferentes configurações no período analisado, marcadas por mudanças nas formas de endereçar os problemas públicos envolvidos. Durante o governo Dilma, o MDS contou com uma ministra politicamente forte, alinhada aos objetivos e ao estilo da Presidência da República. O corpo burocrático era caracterizado por agentes com formação nas grandes áreas de SAN e com carreiras vinculadas a essa agenda por meio de experiências na academia, ONGs, movimentos sociais etc. Esse achado acrescenta evidências empíricas ao que foi discutido anteriormente por Sencébé et al. (2020), quando mencionaram que as semelhanças entre trajetórias pessoais e quadros de referência dentro e fora dos governos do PT geravam alto grau de integração institucional. Em outras palavras, argumentamos que houve uma convergência de habitus, em que indivíduos com experiências de socialização semelhantes compartilham disposições para a ação.
Destaca-se ainda que, no período pré-rutura, uma visão de "sistemas alimentares" foi gradativamente ganhando força na burocracia, favorecendo a intersetorialidade no enfrentamento dos problemas públicos de SAN. Ou seja, embora o campo tenha sido historicamente dominado pelo viés da produção de alimentos, e até então ainda fosse dominado por agentes com formações ligadas a esses espaços, essa visão favoreceu a ascensão de agentes com formações diversas, como os com formação em nutrição, fortalecendo a abordagem intersetorial.
Com as turbulências políticas do segundo mandato de Dilma, ainda que os agentes apontem que o MDS se manteve satisfatoriamente blindado, já havia sinais da ameaça de choques exógenos ao campo burocrático. Desde o golpe de 2016, agentes mobilizadores de capital partidário com experiência na administração pública local e regional ingressaram no campo burocrático para assumir cargos de direção e assessoramento. Isso se deu em detrimento de agentes com maior capital educacional e trajetórias ligadas a conexões extracarreira com o campo da SAN e com o funcionalismo público federal.
No que se refere a uma "mentalidade paroquial" apontada pelos agentes, é interessante observar que, em governos anteriores, havia indivíduos com componentes importantes de suas trajetórias vinculados aos serviços locais, mas que possuíam a combinação de outros capitais, como ter cursado grandes universidades, como as federais, bem como ter trabalhado em diferentes administrações do país como quadros da gestão pública. Isso tenderia a gerar um habitus diferenciado em termos de atuação no serviço público em relação àqueles que permaneceram restritos aos seus locais de origem, com atividades intrinsecamente ligadas à dinâmica da política local.
Além disso, durante o governo Temer, ao recrutar agentes ligados ao campo da alimentação e da agricultura, estes tenderam a se relacionar mais estreitamente com os agentes hegemônicos da política alimentar, em detrimento do campo da SAN. Ao manter algum senso de ordem no campo, apesar dessa mudança de orientação, certos agentes da burocracia, especialmente os especialistas, tiveram o valor de seu capital parcialmente preservado, mantendo-se em posições capazes de, por outro lado, reforçar a estabilização do próprio campo e conservar certas rotinas.
No governo Bolsonaro, o choque foi mais abrupto e houve menos trajetórias marcadas por conexões com a política dos alimentos em um sentido mais amplo. Este tipo de nomeação de “outsiders” para posições-chave é uma forma de desestabilizar ainda mais o próprio campo. Além disso, as constantes mudanças no topo, que se estenderam aos escalões inferiores, tornaram a estabilidade mais difícil. Isto criou uma situação em que os burocratas especializados foram forçados a sair do subcampo da SAN, também como forma de preservar o valor dos seus capitais (especialmente os simbólicos) de um campo em crise.
A visão dominante no período pré-rutura favoreceu o desenvolvimento de instrumentos de coordenação e monitoramento intragovernamentais, bem como o cultivo de uma rede de agentes, inicialmente externos ao Estado, que muitas vezes atuavam junto ao espaço político-burocrático. Esse ponto corrobora o questionamento de abstrações reificantes, como aquelas que opõem estritamente o Estado à sociedade civil (Dubois, 2018).
Então, devido ao viés "contra-hegemônico" que historicamente dominou o campo da SAN, argumenta-se que as rupturas no espaço político-burocrático não foram motivadas apenas por suas próprias dinâmicas internas, mas também como forma de atingir e desestabilizar o próprio campo da SAN. Isso dialoga com os resultados encontrados por Andrade et al. (2024) ao abordar os mecanismos de resiliência e as relações com atores não-estatais. Os resultados também corroboram o que foi encontrado por Grisa et al. (2017) nas capacidades para a agricultura familiar, apontando que elas são condicionadas por relações de poder historicamente desiguais.
Considerações Finais
O estudo em questão oferece uma possibilidade de aproximação entre os estudos de burocracia por meio de uma abordagem de campos sociais e a pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. Observar como os projetos de configuração e reconfiguração das capacidades do Estado para enfrentamento de problemas públicos concernentes à SAN se relacionam com as dinâmicas do campo burocrático nos oferece ferramentas adicionais para estudos avaliativos na área, algo ainda mais importante em períodos marcados por recuos democráticos e desmontes dos aparatos sociais.
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