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Apresentação
A Atenção Primária à Saúde (APS), enquanto “porta de entrada prioritária” para o Sistema Único de Saúde (SUS), representa muitas vezes espaço de primeiro contato entre profissionais de saúde e moradores de um território, e por isso apresenta enorme potencial de contribuição à garantia da segurança alimentar e nutricional (SAN) (BRASIL, 2022). A APS está singularmente bem posicionada para atuar no rastreamento e identificação de situações de insegurança alimentar (IA), na promoção da SAN e na garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA).
A inserção de nutricionistas na APS, em especial integrando equipes multiprofissionais, contribui para a realização desta possibilidade. No contexto da atenção primária, o nutricionista pode elaborar estratégias que tensionam as práticas clássicas de atenção nutricional, promovendo em seu lugar uma clínica ampliada e compartilhada, e ressignificando a educação alimentar e nutricional em diálogo com as necessidades de cada território (Alves et al., 2021). Cabe reconhecer o papel do profissional nutricionista como protagonista, indutor e qualificador das práticas de atenção nutricional, inclusive daquelas voltadas para situações de insegurança alimentar, oferecendo apoio matricial para que outros profissionais possam lidar com essas situações. Para isso é preciso que o nutricionista compartilhe saberes, práticas e responsabilidades com outros trabalhadores da saúde, para que em conjunto construam e fortaleçam um campo comum de conhecimentos acerca da alimentação e nutrição que possibilitará a oferta interdisciplinar e multiprofissional da atenção nutricional (BRASIL, 2017).
Uma das estratégias possíveis para compartilhar saberes e oferecer apoio matricial na APS é a construção de um diagnóstico situacional. O Diagnóstico Situacional Participativo se constrói coletivamente, visando conhecer a realidade, a dinâmica, as necessidades e os riscos da população adscrita, além de explicitar o funcionamento da unidade de saúde e a organização dos serviços na localidade (Da Silva; Koopmans; Daher, 2016). De acordo com Cerqueira (2021), o Diagnóstico Situacional Participativo deve identificar, a partir do levantamento da realidade local, as potencialidades e problemas, possibilitando uma melhor organização dos serviços, um planejamento com ações mais efetivas, uma maior participação dos trabalhadores e consequentemente tomadas de decisões mais conscientes.
Este relato de experiência narra a construção de um diagnóstico situacional participativo em uma Unidade Básica da Saúde (UBS) na Zona Norte do Rio de Janeiro, ocorrido em 2022. A experiência foi protagonizada por residentes em saúde da família do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Família da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz).
Objetivo
Este trabalho tem como objetivo descrever a elaboração de um diagnóstico situacional participativo dos territórios atendidos pela UBS, mediada por residentes. Este relato de experiência enfatiza os elementos relacionados à SAN e ao DHAA que surgiram ao longo da atividade.
Descrição da experiência
Para elaboração do diagnóstico situacional participativo os residentes realizam oficinas com cada uma das sete equipes alocadas na UBS. O objetivo era desenhar em conjunto um “mapa falante” do território adscrito da equipe, indicando as áreas mais pauperizadas e com maior concentração de violações de direitos, as áreas de lazer, os pontos de obtenção de alimentos, os locais com armamento ostensivo, entre outros elementos que os participantes considerassem relevantes. Para elaboração dos mapas foram utilizadas cartolinas, papel manteiga e adesivos de cores diversas para indicar os pontos de interesse, acompanhados de uma legenda definida coletivamente em cada oficina. Enquanto os desenhos aconteciam, uma conversa foi conduzida seguindo um roteiro semiestruturado previamente elaborado.
Cada oficina durou cerca de três horas e ocorreu durante o período em que a equipe de saúde da família estaria realizando sua reunião de equipe semanal. Na ocasião das oficinas, a gerente da unidade orientou que o profissional médico e o profissional de enfermagem da equipe não participassem, para que estivessem disponíveis para atender à demanda ambulatorial de atendimentos de demanda espontânea. Por esse motivo, apenas agentes comunitários de saúde participaram da construção dos mapas falantes.
A princípio, os agentes não enfatizaram questões relativas ao ambiente alimentar nas comunidades. Embora não tenham abordado espontaneamente essa dimensão do território, responderam rapidamente quando perguntados sobre as possibilidades e entraves para obtenção de alimentos in natura e minimamente processados. Afirmam que, para comprar frutas, legumes e verduras é preciso descer do morro até o “asfalto”, percurso íngreme que pode durar entre dez e quarenta minutos dependendo do ponto do morro de onde se parte. No asfalto, os agentes reconhecem um sacolão e um hipermercado, além de uma feira livre que acontece às sextas feiras. Quanto à obtenção de comida dentro da comunidade, foram unânimes ao relatar a abundância de “lanchonetes” (estabelecimentos que vendem hamburguer, churrasquinho, pizza, batata fritas, e outros “lanches” elaborados no local a partir de alimentos ultraprocessados semiprontos) e “biroscas” (estabelecimentos que vendem biscoitos doces e salgados, balas, chocolates e chicletes, bebidas adoçadas, entre outros alimentos ultraprocessados prontos para o consumo, além de alguns mantimentos básicos como arroz, feijão, óleo e farinha, usualmente a preços mais elevados do que “no asfalto”). Afirmaram, ainda, que serviços de entrega de restaurantes, tipo iFood, chegam mesmo nas casas mais altas, embora entrega de mantimentos não seja possível nos mesmos endereços.
Outro elemento relevante relativo à alimentação que surgiu nas oficinas foi a obtenção de combustível para cozinhar. As casas do morro não contam com infraestrutura de gás encanado, dependendo de compra regular de botijões. Segundo os agentes, quem mora “mais embaixo” tem liberdade para adquirir o gás onde preferir, podendo procurar os revendedores que praticam preços mais baixos. Nas partes “mais altas”, entretanto, os agentes relatam que “os bandidos” (assim se referem aos grupos armados que atuam na região) monopolizam a venda de gás, cobrando valores tabelados e usualmente mais altos que os praticados no asfalto. Subir o morro com um botijão adquirido em outro espaço não é uma possibilidade, e os ACS dão a entender que tal atitude seria violentamente punida.
Quando perguntados diretamente sobre a presença de fome nos territórios, os agentes apresentaram respostas vacilantes. Em um primeiro momento, escutou-se a fala “só passa fome quem quer”, indicando a existência de redes de solidariedade que são acionadas quando uma família não consegue obter alimento suficiente. Quando foi pedido que fornecessem mais detalhes sobre essas situações, demonstraram desconforto e resistência, o que pode ser reflexo do estigma associado à insegurança alimentar. Alguns agentes afirmaram categoricamente “ninguém na minha área está desnutrido!”.
A partir desta fala, a nutricionista residente fez uma breve explanação sobre “as diversas expressões da má nutrição”, apresentando o sobrepeso, a obesidade e a carência de micronutrientes como possíveis consequências de situações de insegurança alimentar e nutricional. A assistente social residente contribuiu com a conversa apresentando a insegurança alimentar como uma situação que representa uma violação de direitos fundamentais. Os agentes pareceram sensibilizados pelo novo rumo da conversa, e passaram a elaborar sobre o que consideraram uma “injustiça”: o preço elevado de alimentos saudáveis, que os tornavam proibitivos para a população atendida pela UBS.
O psicólogo residente propôs uma pergunta intrigante: será que os agentes conheciam usuários em sofrimento psíquico justamente porque não conseguiam prover alimentação considerada adequada para suas famílias? Imediatamente e de forma unânime os ACS assentiram, afirmando conhecer muitos casos assim, em especial de mulheres com “muitos filhos”. Alguns agentes se reconheceram nesta posição, e afirmaram que o salário que recebiam não era suficiente para sustentar uma alimentação que consideravam “digna” do início ao fim do mês.
A nutricionista, então, trouxe como definição de segurança alimentar “acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente, sem comprometer outros direitos” e voltou a atenção dos participantes para o mapa em construção, apontando os entraves geográficos e econômicos que os moradores da região enfrentavam para obter alimentos. Em seguida, perguntou aos agentes se eles acreditavam que essa situação teria repercussões sobre a saúde dos indivíduos. Um dos agentes afirmou que havia sob seus cuidados muitos casos de usuários que conviviam com hipertensão e diabetes, situação com a qual todos os ACS se identificaram.
Discussão
Observou-se que, a partir das experiências de educação permanente e apoio matricial que ocorreram durante a elaboração do diagnóstico situacional participativo, alguns profissionais se sensibilizaram para as dificuldades que os usuários enfrentavam para acessar alimentação adequada e saudável. Isso se manifestou em uma postura renovada para lidar com usuários com problemas de saúde antes considerados oriundos de “pouca vergonha” e “preguiça” como obesidade e diabetes tipo 2. A partir do mapeamento do território realizado em conjunto, e das orientações nutricionais baseadas no Guia Alimentar para a População Brasileira elaboradas pela nutricionista residente (realizadas em ações de promoção da alimentação adequada e saudável não descritas neste relato), alguns ACS passaram a se dedicar a encontrar estratégias de acesso junto aos usuários, recomendando que frequentassem a feira da região no horário da “xepa”, compartilhando os dias de promoção no sacolão que funcionava no pé do morro, referindo usuários em insegurança alimentar grave para entidades que faziam distribuição de cestas básicas, entre outras.
Essas estratégias podem reduzir o risco de agravamento da insegurança alimentar, ao mesmo tempo que as intervenções da saúde disponíveis na UBS, como as ações de promoção da alimentação adequada e saudável e o tratamento de agravos nutricionais, se tornam mais efetivas (BRASIL, 2022). A identificação de situações insegurança alimentar em diferentes níveis é imprescindível para que as famílias recebam o cuidado adequado à sua realidade.
Ao mesmo tempo, outros profissionais mantiveram-se inflexíveis em sua postura individualizante e culpabilizante, sustentando que a dificuldade de manter uma alimentação saudável era uma escolha suficientemente informada, e apostando em prescrições individuais baseadas em nutrientes (“consuma menos gordura e menos açúcar”) como solução para problemas de saúde que são, também, desdobramentos de situações de insegurança alimentar. Notadamente, estes profissionais via de regra pertenciam a categoria profissional dos médicos. Os profissionais de enfermagem, por outro lado, embora não tivessem participado das oficinas, se mostraram abertos a escutar os relatos dos ACS sobre elas nas reuniões de equipe subsequentes.
Considerações Finais
As residências em saúde são uma forma potente de lidar com os desafios do SUS através da alocação de profissionais em espaços historicamente vulnerabilizados. A presença do nutricionista na APS pode ser de grande valia para sensibilizar outros profissionais quanto às diversas facetas da insegurança alimentar, desfazendo a concepção de que a fome, enquanto problema social, se apresenta nos indivíduos apenas como quadro clínico de desnutrição.
Entre as estratégias para trabalhar o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional na APS destaca-se o diagnóstico situacional participativo, que pode ser facilitado a partir da técnica de construção de “mapa falante”. O espaço da reunião de equipe, quando conta com a presença de profissionais especialistas com expertise no assunto e conhecimento do território adscrito, pode ser terreno fértil para discussão de casos complexos e para atividades de educação permanente que compõe o apoio matricial que deve ser realizado junto à equipe mínima. Em especial, as categorias profissionais de nutricionista, assistente social e psicólogo têm muito a contribuir com a compreensão que outros trabalhadores da saúde constroem acerca da insegurança alimentar e de seu impacto na saúde individual e coletiva.
Para que esse movimento tenha êxito, é preciso que haja estrutura para que os profissionais trabalhem adequadamente, dando a atenção devida tanto ao atendimento imediato das necessidades em saúde da população adscrita quanto aos processos de gestão da equipe e formação continuada. No contexto em que a experiência relatada neste trabalho ocorreu, a alta demanda ambulatorial repercute sobre a possibilidade de ocupar espaços que propiciem a interação entre profissionais especialistas dos NASF ou e-Multi e os trabalhadores da saúde das equipes de saúde da família.
Os residentes em saúde, por serem profissionais inseridos no serviço de forma distinta dos trabalhadores regulares, experimentam mais liberdade na organização de seu processo de trabalho. No contexto apresentado neste relato de experiência, a presença de residentes na APS, em especial do profissional nutricionista, tornou possível colocar em prática ferramentas que apoiaram os profissionais das equipes de saúde da família para enxergar a insegurança alimentar como objeto do cuidado em saúde.
Referência bibliográfica:
ALVES, K.P.S.; SANTOS, C.C.S.; LIGNANI, J.B.; ALBUQUERQUE, R.M.. Entre intenções e contingências, antigos programas e demandas por novas práticas de atenção nutricional no Sistema Único de Saúde. Cad Saúde Pública. v. 37, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-311X00050221
BRASIL, Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Contribuições dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família para a atenção nutricional. Brasília: Ministério da Saúde; 2017
BRASIL. Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Departamento de Promoção da Saúde. Insegurança alimentar na atenção primária à saúde: manual de identificação dos domicílios e organização da rede. 20 p. Brasília: Ministério da Saúde, 2022.
DA SILVA, Carine Silvestrini Sena Lima; KOOPMANS, Fabiana Ferreira; DAHER, Donizete Vago. O Diagnóstico Situacional como ferramenta para o planejamento de ações na Atenção Primária a Saúde. Revista Pró-UniverSUS, v. 7, n. 2, p. 30-33, 2016. Disponível em : < http://editora.universidadedevassouras.edu.br/index.php/RPU/article/vie…;. . Acesso jul. 2024.
CERQUEIRA, Luciano. Guia do Diagnóstico Participativo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Flacso Brasil, 2021. Disponível em: <https://flacso.org.br/files/2015/08/Guia-do-Diagnostico-Participativo_e…;. Acesso em : 28 ago. 2022
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