COMO A PANDEMIA DE COVID-19 AFETOU AS FEIRAS LIVRES E POTENCIALIZOU OS SUPERMERCADOS EM CIDADES MÉDIAS NA AMAZÔNIA

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Relato de pesquisa - Oral
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Resumo

Resumo

Introdução

            Durante a pandemia de covid-19, o mundo dos mercados foi amplamente afetado, havendo setores que decaíram significativamente durante a crise, como foi o caso dos espetáculos, os diversos ramos de transportes, serviços de alojamentos e de alimentação. Especialmente nos primeiros meses, e devido às restrições às circulações, diversas adaptações foram sendo construídas, sendo que alguns setores tiveram que se transformar para conseguir sobreviver. Alguns adotaram sistemas remotos de atendimento, incrementaram vendas on-line, passaram a atender delivery, mudaram o perfil dos produtos, entre outras ações.

No contexto dos mercados de produtos alimentícios oriundos da agricultura, observamos alguns movimentos instigantes, que afetaram tanto no momento da pandemia quanto o depois. Exploraremos aqui algumas transformações ocorridas em feiras livres e em supermercados, em observância à comercialização de produtos da agricultura familiar, situados na cidade de Marabá, no estado do Pará, Amazônia brasileira. Por meio de um conjunto de pesquisas foi possível acompanhar algumas dinâmicas ocorridas que levaram às vantagens competitivas dos supermercados em detrimento às feiras. Resultados similares, que não poderão ser explorados aqui, também foram observados em pesquisas conduzidas nas cidades de Abaetetuba e Canaã dos Carajás, ambas no estado do Pará.

Uma das mudanças iniciou com o Decreto nº 10.282, de 20 de março de 2020, em que foram estabelecidos os serviços essenciais à população no Brasil, com o acirramento das medidas restritivas. Embora com algumas restrições e normas específicas, os serviços de produção, distribuição, comercialização e entrega, realizadas presencialmente ou não, de alimentos estavam mantidos, ou pelo menos assegurados, desde que atendessem a outras normas sanitárias ainda inéditas, como as medidas de distanciamento.

Houve aí um hiato que, ao nosso ver, permitiu uma proliferação de ações e decisões públicas e privadas que afetaram diretamente as feiras e supermercados. Uma análise sobre algumas normativas municipais, após o decreto presidencial citado, já nos fornece bons exemplos de como os municípios reagiram, indicando as maiores dificuldades com relação ao trânsito de pessoas em vias de ampla circulação pública, como é o caso dos espaços de feiras.

Algumas perguntas que instigaram a pesquisa são derivadas das ações efetivas que ocorreram nos municípios, com ênfase naqueles das cidades médias, onde diversas iniciativas de feiras livres, feiras de agricultura familiar, ou outros espaços alternativos de comercialização de alimentos vinha tentando se fortalecer, a partir de iniciativas coletivas, apoiadas ou não por instituições públicas, ao mesmo tempo em que as redes de supermercado também ampliavam seus espaços e atratividades.

Entre os fatos empíricos que chamaram a atenção em nosso lócus de pesquisa foi o crescimento de redes de supermercado, inclusive com ampliação de Centros de Distribuição (Grupo Mateus) e abertura de supermercado com funcionamento por 24 horas (Rede Líder), durante a pandemia. Enquanto isso, as diversas feiras no município decaiam as vendas, havendo inclusive momentos em que praticamente fecharam, conforme demonstrou Claudino (2020). É importante destacar que a pandemia apenas acelerou um processo que já estava ocorrendo, facilitando os dispositivos já em operação, conforme veremos adiante.

Objetivo

            O objetivo do texto é analisar as transformações ocorridas nos mercados de produtos da agricultura familiar em feiras e supermercados durante e logo após a pandemia, buscando explicar as principais estratégias em cada um dos segmentos e os resultados percebidos.

Métodos

A metodologia da pesquisa é do tipo qualitativa, resultado de um conjunto de aplicações de questionários e observação in lócus durante os anos de 2020 a 2024, em diferentes espaços de comercialização. Mais do que relatar os resultados de questionários específicos, trazemos aqui elementos de reflexão que nos ajudam a visualizar as transformações e os modos como têm funcionado esses mercados nas cidades médias.

Resultados/Discussão

As formas de comercialização de produtos alimentícios têm passado por inúmeras transformações nas últimas décadas, alavancadas pelas possibilidades de ampliação dos tempos de prateleira, pelos avanços tecnológicos que permitiram a quimificação, a genética moderna, a motomecanização da agricultura, e a abertura dos mercados de uma maneira mais geral. Aproveitando-se desses movimentos, formaram-se grande conglomerados que podem ser reconhecidos como sistemas agroalimentares, em permanentes processos de verticalização e estandardização da produção, sempre em busca de conquistar e monopolizar diferentes mercados.

Esses processos, em conjunto, trazem diversas consequências aos mercados locais, como as dificuldades de concorrência pelos preços, pela regularidade de oferta, pelas formas de distribuição, adequação a normas sanitárias cada vez mais exigentes, entre outros atrativos que estimulam a procura por esses mercados inseridos no sistema agroalimentar, que já se pode chamar mundializado. As pesquisas realizadas têm encontrado evidências de que as economias locais tendem a ser desestruturadas pelos mercados de grande porte como os supermercados e hipermercados, que passam a competir também pelos produtos in natura e não apenas pelos industrializados e ultraprocessados. E mais, competem também pelos fornecedores locais.

Em entrevistas realizadas com vendedores ambulantes, desde pelo menos 2021, identificamos a dificuldade desses comerciantes, que muitas vezes são também agricultores familiares, ou participam de arranjos em que um ou mais membros da família fiquem responsáveis pela comercialização, enquanto outros cuidam da produção. Entre os relatos, muitos afirmaram que têm enfrentado muitos desafios para comprar alguns gêneros como hortaliças e folhosas (como alface, couve, cheiro-verde, jiló, quiabo, entre outras) para revender em suas bancas, uma vez que os produtores/agricultores já possuem contratos e estão vendendo diretamente para os supermercados.

Entre as formas e estratégias de manter-se nos mercados, muitos desses vendedores ambulantes compram esses alimentos a cada tarde em hortas urbanas ou periurbanas, para vender no dia seguinte. Alguns relatos foram muito incisivos sobre as dificuldades atuais: “muitas vezes, a gente chega lá para comprar, e eles dizem que não têm pra vender. Aí a gente olha, e eles tão carregando um caminhão do supermercado”. Assim, mesmo havendo interesse pela compra em pequena escala, eles não conseguem as mercadorias para manter seus pontos de venda, fazendo com que os consumidores gradativamente mudem o local de compra por não encontrarem o que buscam. Em alguns casos, no mesmo dia, esses ambulantes e pequenos comerciantes vão até os supermercados, compram mercadoria para revender.

Uma entrevista realizada em uma feira que fica em um bairro chamado Nova Marabá, mais precisamente na Folha 11, também foi expressiva das dificuldades. O espaço foi conquistado pela demanda de diversos vendedores ambulantes e outras pessoas sem vínculos de emprego, inclusive alguns que eram agricultores familiares periurbanos, que tinham por meta se tornar feirante. Segundo um dos representantes do espaço, a feira foi criada em 2018 com a participação de cerca de 200 feirantes, apoiados pelo público local para ocupar um espaço nas proximidades de um posto municipal de saúde. Para o interlocutor, a pandemia foi um baque para o espaço, sendo que depois ficar um tempo quase parada durante as medidas restritivas, voltaram cerca de 50 feirantes. O movimento ainda foi caindo, devido a várias dificuldades, e no primeiro semestre de 2024, a feira estava contando com cerca de 30 barracas apenas.

Também nessa feira, foi relatada a dificuldade de conseguir produtos da agricultura local com a justificativa de que os supermercados estão comprando tudo. Argumentam que a produção da agricultura familiar regional está abaixo da demanda, sendo que muitas pessoas de Vilas que são “praticamente rurais” estão comprando alimentos típicos do campo na cidade (como hortifrutis), como se, na visão dos interlocutores, a agricultura familiar está deixando de produzir alimentos suficientes para autoabastecimento. Michelotti (2019, p. 188) explicita que apesar do elevado quantitativo de estabelecimentos que podem ser considerados como de agricultura familiar, há forte especialização em pecuária bovina, afetando a dinâmica e relevância de outras produções agrícolas. Para esse autor, especialmente devido à dinâmica regional da mineração (onde a Companhia Vale atua) houve uma crescente “concentração em empreendimentos de grande porte que tendem a comercializar alimentos produzidos pelo agronegócio nacional e bloquear canais de comercialização de alimentos (...) da produção familiar regional”, com destaque para 2012 em diante.

Desde 2020 temos investigado as transformações nos mercados locais que comercializam produtos da agricultura familiar, desde os pontos de venda direta até os grandes mercados nas cidades. Entre as constatações sobre a pandemia, que foi a impulsionadora das mudanças recentes mais rápidas, estiveram as medidas restritivas nos momentos mais críticos. Todas as feiras que acompanhamos de modo mais próximo, em um total de 5 em Marabá (e 1 em cada cidade mencionada anteriormente), tiveram atividades totalmente ou parcialmente interditadas por pelo menos 2 semanas durante a pandemia. Todas também apresentaram queda nas vendas a ponto de ficar quase sem movimento em alguns momentos durante a pandemia, mesmo com os feirantes nas bancas. Os consumidores foram deixando de ir durante os primeiros meses da pandemia.

Ao lado disso, o outro movimento que ocorria era o aumento e fortalecimento dos supermercados, mercados de médio porte e mercearias. Não identificamos o fechamento em nenhum momento durante a pandemia. Um dos fatores observados era que apenas os mercados mais estruturados conseguiam atender as normas de distanciamento, uma vez que poderia regular as entradas e saídas, inclusive formando filas do lado de fora das lojas, entrada de apenas 1 pessoa por família, abrindo horários específicos apenas para pessoas consideradas prioridades e de risco (idosos, portadores de doenças do sistema imune, entre outras), ter possibilidade de meios sanitários recomendado pelas agências de saúde, especialmente o álcool em gel, que virou uma regra nacional, a limpeza dos carrinhos a cada uso, desinfecção química programada, uso obrigatória de máscaras por parte de clientes e funcionários, entre outras medidas.

O ambiente do supermercado se tornou, de certa forma, muito mais seguro contra o vírus diante de tantas incertezas, do que o ambiente da feira, onde não era possível tanto controle de fluxos, apesar da ventilação natural e exposição ao sol. Isso se tornou uma grande oportunidade para os mercados maiores, que passaram a estabelecer mais e mais protocolos de segurança, que eram anunciados nas redes sociais, nas rádios locais, e nos autofalantes para os consumidores durante as suas compras. Não era incomum ouvir durante as compras os nomes dos produtos químicos ou procedimentos em que os processos de higienização e desinfecção dos ambientes eram realizados.

Mesmo durante a pandemia, a rede de supermercados crescia. Conforme pesquisa de Sousa (2022), em Marabá, no ano de 2021 foi aberta a terceira unidade de supermercados do grupo Mateus, no bairro Nova Marabá, e mais, a demanda durante a pandemia se tornou maior, havendo a necessidade de implantar um Centro de Distribuição, inaugurado em 2021, para atender as unidades locais e as das cidades vizinhas Itupiranga, Jacundá, Tucuruí e Redenção.

Outro ponto a destacar é a origem dos produtos, apresentando baixa articulação com a produção regional, já que boa parte das mercadorias vem de outros estados. Identificamos ao longo dessas pesquisas que os produtos alimentícios de origem agropecuária comercializados nos mercados, desde os pequenos pontos de venda até os supermercados, são oriundos de outros estados do país, havendo destaque para alguns centros que são produtores no Centro-oeste e Nordeste do país, com ênfase nos estados de Goiás e Bahia. Há diversas formas de distribuição, desde armazém que atende pequenas e grandes quantidades, caminhões que vendem pequenas quantidades em pontos estratégicos na cidade, como na Folha 28 e no núcleo Laranjeiras.

Michelotti (2019) encontra informações similares, destacando o baixo abastecimento com produtos regionais nos supermercados da cidade. Para esse autor, os grandes estabelecimentos não apenas bloqueiam a comercialização de alimentos de origem regional em relação aos consumidores desses supermercados, mas conseguem influenciar também os demais mercados menores, pois a rede de abastecimento que é mobilizada por esse circuíto do agronegócio nacional também é acessada pelos mercadinhos, feirantes, ambulantes, influenciando os preços, hábitos de consumo, formas de comercialização e apresentação dos produtos, criando desvantagens para produtores e comerciantes locais, limitando também a diversificação produtiva local.

A continuação nas análises após a pandemia nos mostrou que essas dinâmicas se aprofundaram. As feiras estão com dificuldades de retornar ao movimento anterior, enquanto os supermercados expandiram. Ao verificar os dados do comércio varejista na cidade (Tabela 3421, CNAE 2.0, do IBGE, série encerrada em 2021; para o ano 2022 Tabela 9418) identificamos que o número de unidades varejistas em Marabá foi de 1305 em 2019, 1457 em 2020, 1551 em 2021 e 2050 em 2022; ao mesmo tempo, o pessoal ocupado nessas unidades foi de 8743 em 2019, 9001 em 2020, 9756 em 2021 e 8195 em 2022 (IBGE/SIDRA, 2024). Esses números crescentes, mesmo ainda agregando todo o segmento varejista, indicam que essa forma de comércio teve expansão no período da pandemia e no ano seguinte.

Conforme foi possível apresentar no texto, a pandemia foi apenas um catalizador de um processo já em decurso há mais tempo na região. A configuração regional com prioridade para a produção pecuária bovina, a exploração mineral na região, que influencia a demanda de produtos e os tipos de serviços oferecidos vão gradativamente sufocando a expansão da agricultura familiar e das iniciativas de circuitos curtos de comercialização.

Considerações Finais

Esse texto analisou as condições relacionadas especialmente ao contexto da pandemia que provocaram o enfraquecimento das feiras livres em Marabá, uma cidade do sudeste do estado do Pará, mas que foi observada também em outras cidades amazônicas. O início dos processos de distanciamento social, a sensação de insegurança de andar nas ruas e ter contatos com muitas pessoas, o que é muito frequente nas feiras, ao mesmo tempo em que os supermercados iam construindo protocolos de segurança contra a disseminação do vírus covid-19 que se apresentavam como mais efetivas, provocaram um movimento de redução de ida às feiras. Passados alguns anos desde o início e final da pandemia, o movimento das feiras ainda não foi reconstituído nos locais onde pesquisamos.

A pesquisa destaca que a pandemia apenas estimulou um processo que já vinha ocorrendo nas cidades médias amazônicas, de fortalecimento dos grandes mercados e inserção das outras formas de comercialização em circuitos longos, que operam em estratégias de logística e ocupação dos espaços, ofertando produtos oriundos de polos produtores especialmente em regiões como o Centro-oeste e o Nordeste, além do Sudeste, muito estimuladas por dinâmicas locais de desenvolvimento do capitalismo, como a produção mineral, a pecuária bovina e outras commodities agropecuária. Essas dinâmicas tendem a reduzir a relevância dos circuitos curtos de comercialização e da agricultura familiar regional.

Indicamos que o estímulo de produção de alimentos regionais com base em princípios agroecológicos, via políticas públicas e ações privadas, deve se constituir no caminho para a superação desse desafio de construção de autonomia local para o fornecimento de alimentação de qualidade. Esse ano de 2024 é emblemático da situação contrastante de empenhos federais, visto, por exemplo, pelo Plano Safra 24/25, lançado em 03 de julho de 2024, que prevê em torno de 500 bilhões de reais, sendo menos de 80 para a agricultura familiar, denotando a disparidade de apoio.

 

Referência bibliográfica:

CLAUDINO, Livio Sergio Dias. Impactos dos primeiros meses de pandemia de covid-19 para a agricultura familiar paraense e como a agroecologia pode apoiar a superação. Ambiente: Gestão e Desenvolvimento, v. 13, n. 1, p. 40-54, 2020. Disponível em: https://periodicos.uerr.edu.br/index.php/ambiente/article/view/832/478 Acesso em 03 de julho de 2024.

IBGE/SIDRA. Cadastro Central de Empresas. Município de Marabá, Pará. Tabelas 3421 e 9418. Elaboração própria, 2024. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/3421 Acesso em 08 de julho 2024.

MICHELOTTI, Fernando. Territórios de Produção Agromineral: relações de poder e novos impasses na luta pela terra no sudeste paraense. Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 388f., 2019. Disponível em: http://objdig.ufrj.br/42/teses/882757.pdf Acesso em 03 de julho de 2024.

SOUSA, Jane Maria Sousa de. Comercialização de hortifrutigranjeiros em Marabá, Pará, durante a pandemia da Covid–19. Trabalho de Conclusão de Curso (Agronomia), Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará. 54 f. 2023.

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Instituições
  • 1 Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
Eixo Temático
  • Abastecimento e consumo alimentar saudável
Palavras-chave
Marabá
Sistema Agroalimentar
Comercialização