44984

MEMORIAIS NA PESQUISA EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: UMA COMPOSIÇÃO METODOLÓGICA

Favoritar este trabalho

A mobilização das chamadas escritas de si como fonte para a pesquisa em História e em Educação não é recente. Largamente utilizado para fins de pesquisa nas décadas de 1920 e 1930 pela Escola de Chicago e apesar do quase desaparecimento nas décadas seguintes, as pesquisas com esses escritos são retomadas na década de 1980, sobretudo pela Sociologia e pela Educação, passando a reivindicar uma profunda discussão sobre seus aspectos epistemológicos e teórico-metodológicos. Nesse cenário, talhado na possibilidade de constituição de um saber a partir daquilo que cinde nos sujeitos, as escritas de si foram ganhando as mais amplas formas e domínios: biografias, autobiografias, memoriais, diários, memórias, cartas, relatos; arte filosófica, midiática, literária, hermenêutica, metodológica, profissional, sacerdotal, existencial (PASSEGGI, 2008). No campo da Educação, em especial, a tais escritos foi atribuída a possibilidade de investigação da formação docente, com ênfase na vida do professor, suas carreiras e percursos profissionais (NÓVOA, 1995). O campo de pesquisa em História da Educação Matemática, por sua vez, não ficou isento nesse panorama. A despeito de uma tradição filosófico-epistemológica que conferia às escritas de si a impossibilidade de utilização como fonte histórica, novos horizontes começam a ser delineados. Em trabalhos recentes, Gomes (2008, 2010) atuou na constituição de ferramentas teórico-metodológicas para utilização dessas fontes na pesquisa em História da Educação Matemática, defendendo a Literatura e as escritas de si como fontes legítimas de pesquisa. Um desdobramento do trabalho acima vem sendo desenvolvido numa pesquisa de Mestrado em Educação Matemática. Numa opção de mobilizar memoriais de concursos de Livre-docência, a pesquisa precisou munir-se de compreensões filosóficas, epistemológicas e metodológicas que permitissem a utilização de tais escritos para compreender como pesquisadores em Educação Matemática se constituem e se legitimam, narrativamente, como educadores matemáticos. Sobre essas questões, este texto explicitará uma composição metodológica construída no desenrolar dessa pesquisa. Um aspecto a destacar é a incompatibilidade de considerar os memoriais como fontes e uma história de cunho positivista, e isso decorre de muitas questões, sendo duas delas aqui destacadas. A primeira seria desconfiança sobre um documento constituído a partir da memória. Vale lembrar que, em muitas vertentes historiográficas, a dissociação entre memória e história conferiu à memória a característica de conhecimento não-científico, sendo desprestigiada como fonte na pesquisa histórica. A segunda seria a noção de que a história não é uma narrativa. Se a narrativa é inventada, ficcionalizada, romanceada, ela seria competência da Literatura; pois a história deve tratar apenas do real, do verdadeiro, da concretude dos fatos. Sendo assim, foi necessário na pesquisa pensar um conhecimento histórico privilegiasse não os universais, como a identidade, a unidade, a Tradição; mas que se pautasse (também) nas potencialidades das narrativas, num exame hermenêutico que destaca a singularidade e o movimento trazidos pelos memoriais. Deste modo, do ponto de vista metodológico, nos perguntávamos que constituição do pesquisador seria evidenciada se nos debruçássemos apenas sobre os memoriais de livre-docência. Na leitura até então realizada, a compreensão mais intensa e geral é a de que a Educação Matemática, sob vários aspectos, não se diferencia no horizonte das demais áreas de pesquisa, valendo-se dos mesmos recursos técnicos para que pesquisadores se identifiquem como pertencentes à área. Isso nos mostra que, para além do discurso fundador de campo “interáreas” ou “interdisciplinar”, a Educação Matemática se sujeita aos mesmos mecanismos constituídos para “produzir pesquisa”, “produzir ciência”, identificando-se com os “padrões” estabelecidos pelos cânones institucionais clássicos. Trata-se, pois, de uma área que segue os arquétipos vigentes quando seus pesquisadores precisam se legitimar como pesquisadores, recorrendo a um discurso que seleciona, organiza, exclui, hierarquiza, classifica; que subordina os discursos a um poder difuso, mas, certamente, coercitivo. Nos memoriais, a predominância de um estilo mais descritivo (ligado aos aspectos normativos da formação) em relação ao narrativo (ligado a aspectos outros da vida do pesquisador), nos indicou que os pesquisadores escrevem os memoriais do modo que escrevem por estarem circunstanciados por necessidades e exigências; atravessados por uma rede de poderes que imprimem certa direção de escrita, certa instância discursiva. Nesse sentido, eles não escrevem assim por ser natural escrever assim: eles o fazem de tal e tal modo atendendo a certos dispositivos de controle, certas necessidades e desejos. Em fim, pretende-se que este trabalho contribua com procedimentos metodológicos diferenciados na pesquisa em História da Educação Matemática. Orientando-se, sobremaneira, pela sensibilidade e experiência do pesquisador em relação ao pesquisado, pretende-se educar essa sensibilidade por meio de leituras, reflexões e exercícios que permitam criar um modo singular de articular essas fontes, nas cercanias dos objetivos, dos horizontes teórico-metodológicos e do rigor hermenêutico necessário. Assim, busca-se em compreender que tipo de conhecimento histórico pode ser gerado a partir desses escritos, e como a análise desses diz algo sobre a contemporaneidade da Educação Matemática.