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Transbordar e reexistir: divulgação cultural em uma abordagem decolonial

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Ao longo de uma década e meia, um grupo de agentes culturais tem desenvolvido, no município de Campinas, um programa educativo que utiliza a linguagem audiovisual como mediador de processos destinados a promover o protagonismo cultural dos cidadãos. A Pedagogia da Imagem, realizada no Museu da Imagem e do Som de Campinas, (re)lançou-se em 2003 com um diversificado leque de atividades, envolvendo formação de agentes educativos e comunitários, além de crianças e adolescentes, em oficinas populares de fotografia, vídeo, desenho de animação e história oral, e alcançou mais do que a apropriação das linguagens e tecnologias de comunicação pelos seus participantes. Ela se constituiu em um dispositivo de reconhecimento e visibilidade dos territórios culturais de Campinas, especialmente dos grupos e das matrizes historicamente silenciados e invisibilizados. No movimento de apropriação de linguagens, a Pedagogia da Imagem possibilitou a tais sujeitos coletivos realizar a “leitura de mundo”, “dizer a própria palavra”, mostrar a própria face e testemunhar com suas memórias – em primeira pessoa. Os produtos gerados nos processos educativos foram integrados, por mais de uma década, à programação cultural e aos acervos do Museu da Imagem e do Som, contribuindo para transformar e pluralizar o perfil de suas coleções, até então muito marcadas por um viés oficial, profissional e restrito temática, temporal e geograficamente em torno dos processos de modernização da cidade. Por duas vezes (nos anos de 2009 e 2016), o programa recebeu o prêmio Darcy Ribeiro de Educação em Museus, concedido pelo Instituto Brasileiro de Museus, além do Prêmio Victor Valla de Educação Popular em Saúde. Nesse sentido, entendemos que a experiência desenvolvida nesse programa aponta para possibilidades de abordar a divulgação cultural numa chave decolonial, isto é, que supere e inverta as tradicionais lógicas que reproduzem os padrões de poder/ saber/ ser instituídos pela modernidade/ colonialidade. Em primeiro lugar, ela integra a divulgação numa abordagem 360 graus, que parte da dimensão educativa – relativa às aprendizagens de linguagens e tecnologias, em sua constituição histórica e estética; envolve a experimentação criativa – expressão da visão de mundo e dos modos de vida presentes nos territórios culturais; se concretiza na articulação de circuitos de fruição cultural – onde os produtos gerados reencontram a comunidade, estimulando o autorreconhecimento e as mediações simbólicas; e ciclicamente culmina na preservação – alimentando a memória coletiva que possibilita novos ciclos de aprendizagem. Dessa maneira, a divulgação cultural é vista complexamente, não como o elo final de uma cadeia operatória da cultura, onde as distintas funções são socialmente fragmentadas e serializadas. Ao contrário, a divulgação está integrada aos ciclos de aprendizagem, produção e preservação cultural, na medida em que esses processos se desenrolam na e pela comunicação/ dialogia. Em segundo lugar, o caráter decolonial é dado pela capacidade de projetar as vozes e imagens historicamente subalternizadas, sem paternalismos ou populismos, entendendo que o município possui distintas matrizes culturais que se articulam desigualmente em termos de poder. Ao compartilhar os meios de produção de imagens e discursos em produtos culturais, o programa Pedagogia da Imagem não apenas abre espaço para o seu acolhimento no museu, mas põe em pauta a existência de processos outros de produção, comunicação e preservação cultural. Nesse sentido, aponta não apenas para a necessidade de democratização da matriz hegemônica – uma matriz sociotécnica majoritariamente excludente, mas para a importância e a potência libertária do reconhecimento e interculturalização das matrizes de reexistência – as que permitem transformar os espaços além das linhas abissais em paisagens culturais, territórios vivos. Essas heterotopias, no enfrentamento às negações e violações de direitos, invertem os valores da hierarquia, da acumulação e da competição, produzindo a resiliência e as libertações possíveis por meio da horizontalidade, da partilha e da solidariedade.