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Redes digitais, infraestruturas e feminismos: um olhar sobre processos de atualização de resistência em contexto de concentração de poder e controle na Internet

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A expectativa de autonomia, descentralização e horizontalidade que marcou o início do debate sobre a Internet vem sendo confrontada por processos crescentes de concentração de poder e controle destinados a promover, prioritariamente, novas formas de monetização para a acumulação privada por grandes empresas e a vigilância por empresas e Estados, conforme vem demonstrando a literatura produzida no campo acadêmico e ativista sobre o tema (GREENHALGH, 2014; HARAWAY, 1995; VICENTIN, 2016; STERLING, 2012; ZUBOFF, 2015). Essa expectativa foi confrontada ainda pela denúncia das desigualdades constituídas a partir de diferenças associadas aos corpos – sobretudo de gênero, raça e classe – que o legado teórico feminista (ALONSO, 2007; HARAWAY, 2003; NATANSOHN, 2013) ajuda a colocar em primeiro plano ao revelar a reprodução de padrões discriminatórios nas redes e apontar que os processos de controle e concentração de poder não irão impactar todas pessoas da mesma forma. Os trabalhos que analisam criticamente esses processos, porém, não buscam construir uma narrativa de determinismo tecnológico, mas sim compreender a emergência de novas formas de poder e apontar que serão necessárias também novas formas de análise e de ação política para resistência (HARAWAY, 1995). Nesse contexto, ao olhar para a atualização de formas de resistência, o objetivo deste trabalho é refletir sobre os sentidos mobilizados, as formulações e potências que emergem de articulações tecnopolíticas de coletivos de mulheres, pessoas não binárias, ciberfeministas e ciberativistas antirracistas em torno do debate sobre as infraestruturas pelas quais o imenso volume de dados digitais trafega globalmente e sua busca por alternativas a processos hegemônicos, em especial, pela constituição de redes autônomas e comunitárias. Essa reflexão será construída a partir da união dos achados em pesquisa bibliográfica e documental e das experiências obtidas em pesquisa de campo realizada sob a perspectiva dos saberes localizados (HARAWAY, 1995), em que se busca identificar atuações políticas em contextos específicos, que produzem resistências e tensões múltiplas e complexas. Baseadas em paradigmas de abertura do design e de gestão coletiva para promover a conexão compartilhada à Internet ou constituir uma rede digital local, a constituição de redes autônomas e comunitárias vem sendo estimulada por diversas razões, como o desejo de busca por uma conexão à Internet em locais não cobertos e que não interessam economicamente às operadoras privadas e/ou a busca por autonomia e a possibilidade de constituição de um ambiente de rede local para trocas seguras entre a comunidade (VICENTIN, 2016). O impulso para a constituição de redes autônomas aparece na literatura mais conectado a movimentos como o hacking, os movimentos de software livre, de mídia alternativa, de rádios livres, de comunidades tradicionais e indígenas, quilombolas e de proteção do anonimato e da privacidade na rede (VICENTIN, 2017). Com o olhar feminista voltado ao debate sobre infraestruturas emergem também articulações tecnopolíticas de ativistas e coletivos de mulheres e pessoas não binárias, que já vinham historicamente se envolvendo com outras práticas de ciberativismo, em torno da agenda de redes autônomas e comunitárias, vistas como alternativa de resistência e de apropriação tecnológica. Esse envolvimento tem levado ao transbordamento de categorias e conceitos do campo feminista para o debate sobre tecnologias digitais e infraestruturas de rede – como o privilégio e predomínio masculino em algumas atividades ligadas à produção de tecnologias e, portanto, ao saber técnico; a denúncia de regimes de invisibilidade e da sua relação com a naturalização de desigualdades; a reivindicação das noções de consentimento, autonomia e a demanda pelo reconhecimento da heterogeneidade de saberes e práticas. Para a atualização de resistências, a intersecção de agendas feministas e de infraestruturas autônomas traz um compromisso em compartilhar saberes e ampliar a apropriação tecnológica por grupos não hegemônicos. Ajuda ainda a delinear um desafio para o próprio campo ativista, no sentido de que não será possível fazer tecnologias livres e autônomas sem reconhecer e desmontar a hierarquização de vidas e corpos e os legados de estruturas colonialistas que contaminam nossos saberes e práticas.