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Memórias vestidas: um estudo sobre o silêncio das roupas e afetividade

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A proposta deste trabalho é analisar a roupa como linguagem, tomando a vestimenta como objeto de estudo e analisando suas intersecções com o gesto, o corpo e a memória e, a partir disso, analisando os indícios e pistas que revelam linguagens afetivas. O ponto de partida pressupõe o fato de que as roupas estão em silêncio e (aparentemente) não podem falar. O questionamento surge ao pensar como se produz o discurso das mesmas e qual seriam seus sentidos latentes. “Os antropólogos e os historiadores nos dizem que as roupas têm três funções principais, que correspondem às necessidades da decoração, da proteção e do pudor” (FLUGEL, 2008). Porém uma quarta função merece ser destacada: a de significar e produzir memória. Dessa forma, este trabalho objetiva tomar as tramas tecidas e marcadas pela história individual de quem as usa e pensar em seu funcionamento como uma segunda pele de lembranças, atuando como medium, meio de transmissão de acontecimentos. Partindo da suposição de que as roupas estão em silêncio e por isso calam sentidos que irão ecoar nos sujeitos que vão usá-las, pode-se perceber que seu silêncio é a possibilidade de vir a ser do outro e no outro. E é exatamente por essa presença física fantasmagórica que somos invadidos por múltiplos sentidos quando nos conectamos com uma roupa já usada. Somos tomados por uma rede de significações já postas (já dito) e podemos fazer com elas novos significados, uma vez que os sentidos não têm dono. Existe um diálogo silencioso nas tramas de uma roupa que passa diretamente pelos nossos sentidos físicos e suas capacidades sinestésicas. Visão, tato, audição e olfato nos estimulam e despertam uma significação particular. É o jogo da presença-ausente do corpo que a usou e permanece impresso ainda na roupa despida, onde o sentido silenciado pode a qualquer momento irromper. Há vestígios de história em uma roupa reapropriada que latejam para serem reinterpretados. Assim, não apenas os significados contidos na peça importam, mas as novas camadas de significação que as roupas receberão ao serem incorporadas por um novo uso. Podemos pensar assim numa biografia das roupas e nas roupas. Sem o corpo, a roupa parece esboçar uma ambiguidade: a confluência de sentidos impregnados em sua materialidade e ao mesmo tempo a incompletude da peça que se desfaz quando é assimilada por um novo dono. Seja qual for a situação de uma roupa, penhorada, descartada, herdada, emprestada, comprada de segunda mão, um legado com carga sentimental (desejada ou não), o anseio aqui é pensar sobre seu processo de significação intrínseco. A roupa pode parecer calada, trancafiada em seu guarda-roupa, mas isto não significa que ela não é capaz de trazer resíduos de memória e discursos impregnados. Pode não falar, mas vale lembrar que, como diz Eni Orlandi em As formas do silêncio, “o fora da linguagem não é o nada, mas ainda sentido”. Através da Análise do Discurso foi possível desnudar essas questões sobre os sentidos da roupa em seu estado de latência, fora do eixo convencional dos estudos sobre Moda. Como sinaliza Orlandi “as palavras são múltiplas, mas os silêncios também o são”. É a partir desse pressuposto que podemos tomar as roupas como território do não-dito e observar sua relação com o dizível. Observar essa questão sob a ótica do silêncio significante, reduto do possível, do múltiplo, traz riqueza analítica para o tema da memória afetiva que as roupas carregam e possibilita pensar a roupa como biografia errante dos sujeitos em seu aspecto mais íntimo e poético.