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Cultura e técnica: tentativa de uma reflexão não autocrática

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Neste 5º Encontro de Divulgação de Ciência e Cultura, convidam-nos inicialmente a resistir e (re)existir frente a desafios políticos, econômicos e sociais. Ora, é preciso destacar que as propaladas crises ambiental, política e econômica, são expressões da crise de um certo modelo de desenvolvimento, crise no modo de habitar a Terra, de conviver com os outros, humanos e não-humanos. Indo além, a apresentação do encontro chama por experiências e reflexões que transbordem as fronteiras entre instituições e sociedade, saberes, territórios, gerações, crenças e costumes. Animado por tal perspectiva, este trabalho objetiva por um lado perceber o tipo de relação desenvolvida com a tecnologia nas sociedades industriais – o que também é expresso nos objetos técnicos existentes – e, por outro, pensar quais outros agenciamentos seriam possíveis e em que bases outras relações poderiam se desenvolver, propiciando inclusive outros tipos de máquinas. Tal reflexão justifica-se pelo exposto acima, pela urgência de diferentes relações com a técnica e o ambiente, outros modos de conhecer e compartilhar; toma por aparato teórico a obra de autores como Marx, em suas observações pouco divulgadas sobre a tecnologia, e Gilbert Simondon, conhecido como filósofo da técnica, mas também o modo de apropriação tecnológica e compartilhamento de conhecimento de quilombolas, as tecnologias sensíveis de povos indígenas, a relação com a matéria presente em esculturas classificadas por arte naïve, em suma, o pensamento de povos tradicionais. A metodologia consiste no acompanhamento de certas experiências e na discussão destas e de atividades/obras realizadas nos campos da técnica, da produção e das artes – transbordando fronteiras –, em diálogo com a reflexão de autores que pensaram Ciência, Tecnologia e Cultura, bem como o discurso de engenheiros, quilombolas, indígenas e artistas autodidatas – transbordando os saberes. Gilbert Simondon, em sua filosofia não autocrática da técnica, criticou o hilemorfismo, teoria aristotélica para a origem, que concebe a formação do indivíduo através da imposição de uma forma tida como ideal sobre uma matéria passiva. Para Simondon, é primeiro porque o homem, como portador da forma, domina a natureza, que ele pode dominar outros homens. Ao refletir sobre o modo de existência dos objetos técnicos, o filósofo percebe que a própria concepção de trabalho ocidental reproduz situações de dominação decorrentes dessa cisão e dominação inicial sobre a natureza, da divisão entre trabalho manual e intelectual, saber sensível e científico, conflito entre cultura e técnica. Ainda que um “humanismo fácil” possa defender tal dominação para a libertação do humano, “é difícil libertar-se transferindo a escravidão a outros seres, sejam homens, animais ou máquinas” (Simondon, 1989). O conflito estabelecido entre Cultura e Técnica, a cisão entre conhecimento sensível e científico são explicitados neste estudo a partir da observação de certos processos produtivos. Enfocando trabalhos artísticos, discute-se como parte dos que se apresentam como arte e tecnologia, consistem nisso mesmo, mantendo terrenos distintos e usando a tecnologia de maneira utilitária, artista como senhor do aparato técnico, mestre da forma. Por outro lado, comentando realizações técnicas, como a ocupação da Lucas Aerospace, e a conversão de uma fábrica de armamentos em grupo de pesquisa e desenvolvimento de produtos “socialmente necessários” (Farocki, 1986), e artísticas como a ópera multimídia Amazônia (2010) e o filme Xapiri (2012), em que há articulação de tecnologias digitais com o dispositivo xamânico yanomami, bem como obras associadas à arte naïve, busca-se pensar uma auto-atividade (Marx) ou atividade-técnica (Simondon), em que as relações do humano com a natureza, da forma com a matéria, da técnica com o mundo mágico, se dão de modo diferente da racionalidade ocidental. A partir da discussão de Simondon sobre a tecnoestética, enfatiza-se a intenção nas obras audiovisuais mencionadas de fazer ver, fazer sentir a natureza, o mundo, os espíritos. Já nas esculturas, temos um exemplo de como a arte naïve escapa aos cânones da razão ocidental porque do ponto de vista ontológico e epistemológico opera com outra lógica. Não veremos representações, mas seres anímicos presentificados, espíritos vivos “baixados” da dimensão virtual da realidade. Sua enorme carga inventiva nos alerta para outras possibilidades, outros modos de saber-fazer, de forma a contribuir para o entendimento de que o mundo comporta muitos mundos. Tais exemplos e contra-exemplos aliados aos diálogos estabelecidos entre os diferentes modos de conhecer e de saber-fazer, propiciam uma reflexão sobre as relações existentes e possíveis entre humanos e não humanos, entre Cultura e Técnica.