Uma Carta de Esperança no Futuro – 4º CBPPGS

O momento atual é trágico para o Brasil. Certamente, esta carta será lida no futuro e nos cabe, agora, descrever o que vivenciamos. Esta é uma carta com vontade de refundar nossos anseios e necessidades. Dói física e mentalmente viver no Brasil de 2021. Os nossos heróis vestem jalecos. Não empunham armas, mas o conhecimento, a força do cuidado e da ciência. A solidariedade, o respeito à vida e à cidadania enfrentam a crueldade e a perversidade que estão nos impondo uma agenda de morte. Como chegamos até aqui?

Os serviços públicos e o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil foram severamente enfraquecidos por quase uma década de austeridade e cortes orçamentários, de uma política econômica para poucos. A escassez de pessoal, o subfinanciamento e a inadequação dos recursos significaram que, muito antes da pandemia, a saúde pública e os cuidados de longo prazo já estavam limitados. Quando a primeira onda atingiu o país, em abril de 2020, o SUS ficou sobrecarregado e muitas mortes evitáveis passaram a ocorrer.

Com a evolução da pandemia tornaram-se ainda mais evidentes as dificuldades da saúde no Brasil. Em todos os níveis – do local ao nacional – o sistema público sofreu nítido estresse e esgarçamento causados pela grande demanda e pelo pouco investimento. Apesar de tudo, sem o SUS, viveríamos o caos e a barbárie em seu estado mais bruto. Por isso, é premente compreender que a pandemia escancarou nossas diversas desigualdades e nos apontou erros por corrigir. O SUS não é mais um sonho; é um sistema forte, resiliente e superior a governos. É a realidade que contribuímos para construir e enraizar na sociedade brasileira.

A defesa do SUS, nesse período, tornou-se indissociável de agendas essenciais: a defesa da democracia e da Constituição. Dos direitos, da universalidade e integralidade. Das manutenções da vinculação de recursos para a saúde e educação, a defesa dos profissionais da saúde, cientistas e gestores, nossos funcionários públicos. A intransigente luta pela educação e universidade públicas, pela ciência e inovação. Essa agenda emerge em meio ao obscurantismo, à defesa do Estado Mínimo e às atrocidades cometidas diariamente pelo governo federal. Por isso, esta é uma agenda de defesa da vida acima de tudo.

O fato de ser necessária uma pandemia como divisor de águas global para justificar a existência de serviços públicos bem financiados é um triste reflexo do avanço, ainda que sobre ruínas, da era neoliberal. Muitos pensadores pelo mundo dizem haver uma crise do neoliberalismo, mas no Brasil é o pensamento dominante que segue nos aprisionando. Após o SUS ter experenciado alguns avanços importantes de 1990 até 2014, vivemos anos de profundos retrocessos. Presenciamos um governo que flerta com o fascismo, aderido a uma agenda econômica ultraliberal que destrói as políticas públicas, mina as instituições, extingue espaços de controle social, promove a violência, as armas e a negação da ciência. 

Assim, a luta por um sistema universal e igualitário de saúde como uma expressão da luta por direitos nunca fez tanto sentido como em nosso tempo, para o enfrentamento à Covid19 e às desigualdades.

A pandemia tem deixado muito claros os perigos e as consequências nefastas de mercantilizar a saúde e os cuidados. A terceirização e a provisão privada de cuidados de saúde degradaram significativamente a capacidade do Estado de lidar efetivamente com a Covid-19, fragilizando a democracia.

Ademais, é fundamental ter consciência de que a pandemia é uma consequência do modo de produção capitalista que, além de concentrar riqueza e poder, aumentando as desigualdades, destrói os ecossistemas, levando o planeta a uma forte crise climática. De fato, as causas da crise climática e da Covid-19 têm elementos comuns e efeitos convergentes.

Se algo está claro é que não podemos voltar ao mundo pré-pandêmico. Devemos reconstruir, com base na solidariedade e no enfrentamento às desigualdades sociais, econômicas, raciais e de gênero, uma alternativa de desenvolvimento equânime e sustentável.

Nessa alternativa, reafirmamos a necessidade de entender a saúde como direito, com acesso universal e prestada por serviços públicos. As desvantagens das privatizações, terceirizações e do subfinanciamento crônico revelaram que é imperioso de fortalecer o Setor Público. Devemos consolidar a atenção primária à saúde, paradoxalmente esquecida neste momento de pandemia. Afinal, a paralisação dos atendimentos de diversas condições crônicas e linhas de cuidado se manifestará de forma desastrosa, resultando em agravamento destes problemas e gerando ainda mais mortes evitáveis.

São necessários mais recursos de custeio e investimento para lidar não apenas com a alta incidência persistente de casos de Covid-19, principalmente com as novas variantes, mas também com pacientes com condições agudas e crônicas não tratados no período. Reposições salariais, melhores condições de trabalho, mais pessoal e maior apoio aos profissionais de saúde serão necessários. A prioridade deve ser o financiamento público adequado para serviços de qualidade e empregos de qualidade, em vez de restrições orçamentárias, privatização ou parcerias público-privadas que não oferecem melhores serviços.

Nos anos recentes, nos tornamos pária internacional. Por isso, é importante destacar que são desejáveis relações exteriores altivas, sem abrir mão da soberania nacional. Esta crise sanitária mostra que devemos considerar a necessidade de controle sobre a capacidade de pensar e produzir equipamentos e conhecimentos necessários ao bem-estar e à vida de todos. As deficiências reveladas durante a pandemia, da falta de EPI, respiradores, material de testagem em massa e finalmente a matéria prima das vacinas, nos coloca diante da necessidade de articular um novo modelo de desenvolvimento que tenha nos direitos democráticos a sua locomotiva.

Após muitos anos tentando aprender e ensinar, percebemos a centralidade da saúde articulada com saberes multidisciplinares e com a Política. A crise sanitária trouxe consigo o aprofundamento da crise econômica que, juntas, fomentaram uma crise política profunda nos permitindo entender a necessidade de mudanças estruturais. As respostas aos problemas gerados são complexas e não estão disponíveis nos livros, devendo ser construídas através da valorização do conhecimento, da Política, da ciência e da inovação.

A crueldade dos mercadores da morte, encarnada de maneira eficiente pelas autoridades políticas em exercício, deve ser assimilada como uma tristeza sem precedente e uma dor inquestionável, mas como disse o poeta Vinicius de Moraes “a tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não”.

Os congressistas do 4º Congresso Brasileiro de Política, Planejamento e Gestão em Saúde, reunidos de 22 a 26 de março de 2021 em plataforma virtual, saúdam o futuro avistado nas conferências, grandes debates, mesas-redondas e comunicações orais como expressão do direito de todos à saúde e à vida. O SUS, definitivamente, precisa ser defendido, nosso orgulho, portador de esperança.

 

São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, março de 2021