A dança hétero: coreografias sociais da cis-heterossexualidade compulsória

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Comitê Temático - Apresentação Oral
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Resumo

Em um artigo chamado Queer Kineasthesia(1999), Jonathan Bollen inicia seu texto falando sobre os perigos de ir embora de uma festa LGBTQIA+. Se o espaço da festa é razoavelmente seguro, pegar o transporte público, um táxi e/ou caminhar alguns quarteirões até nossa casa nos expõe a inúmeros perigos de um mundo homo/trans fóbico que pode se atualizar a qualquer instante como um estranho que nos agride na rua ou como um parente que pode nos hostilizar verbal ou fisicamente dentro de nossas próprias casas. Bollen deseja investigar as formas como se produz algum tipo de continuidade entre as experiências vivenciadas em uma ball e aquilo que se chama de cotidiano.
Para o pesquisador australiano essa continuidade existe a partir de uma série de incorporações e memórias corporais que produzem um tipo de identidade que é formatada justamente através da experiência cinestésica de dançar em uma festa junto com outras bichas, sapas e travestis. Bollen(1999) afirma que mesmo uma pista de dança vazia é habitada pela virtualidade dos corpos que já estiveram alí ou que estão, de alguma forma, prestes a adentrar o seu domínio. Podemos sentir essa excitação ao sermos os primeiros a pisar em uma pista de dança, sentindo a excitação antecipada pelo que estar por vir, ou ao visitar uma pista de dança abandonada (o que é especialmente sensível em tempos de covid-19) e ativar as memórias corporais de experiências que tivemos alí ou em todas as outras pistas de dança em que já dançamos na vida.

Pensando uma coreografia social da heterossexualidade

Nunca dançamos sozinhos. Dançamos em relação com o outro. Se isso é verdade para sujeitos dissidentes de gênero e sexualidade, porque não seria por aqueles identificados com a norma? De que maneiras podemos pensar sobre as formas da inteligibilidade cultural de sujeitos que se identificam ou são identificados como heterossexuais é socialmente produzida?
Se a construção social de uma identidade dissidente de gênero e sexualidade é produzida de forma coletiva, uma pista inicial pode nos dizer que a identidade hétero é também, mesmo que através de outros processos, uma construção corporal coletiva e não uma identidade individual, autodeterminada e automovente, para pensar sobre alguns marcos ideológicos da modernidade.
O título do presente trabalho é inspirado no texto seminal (ou ovariano) de Monique Wittig(1992), O pensamento hétero, em que a pensadora e linguista lésbica francesa tenta propor uma epistemologia de sexualidade dissidente que proponha outras categorias de gênero e sexualidade que não aquelas impostas pela matriz heterossexual de pensamento, matriz essa que se pretende neutra e reage de maneira violenta aos conhecimentos produzidos a partir de miradas minoritárias.

Os discursos que acima de tudo nos oprimem, lésbicas, mulheres, e homens homossexuais, são aqueles que tomam como certo que a base da sociedade, de qualquer sociedade, é a heterossexualidade Estes discursos falam sobre nós e alegam dizer a verdade num campo apolítico, como se qualquer coisa que significa algo pudesse escapar ao político neste momento da história, e como se, no tocante a nós, pudessem existir signos politicamente insignificantes. Estes discursos da heterossexualidade oprimem-nos no sentido em que nos impedem de falar a menos que falemos nos termos deles. (…) Com a sua inescapabilidade erigida em conhecimento, em princípio óbvio, em dado pré-adquirido a qualquer ciência, o pensamento hétero desenvolve uma interpretação totalizante da história, da realidade social, da cultura, da linguagem e simultaneamente de todos os fenômenos subjetivos. (WITTIG, 1992. p. 2-3)

Podemos pensar, a partir de Wittig, que se exsite um pensamento hétero, enquanto instituição dominante, quer dizer, aquele que tem o poder de categorizar as demais identidades de gênero e sexualidade como desviantes, também existe uma produção disciplinar e discursiva da experiência de uma cinestesia heterossexual. Um tipo de cinestesia que, tal como o pensamento hétero, o qual Monique ressalta que é necessariamente materializado através da normatização dos nossos corpos, procura não apenas categorizar, como enquadrar e subalternizar os sujeitos e os conhecimentos epistêmicos e cinestésicos produzidos por sujeitos que escapam da suposta neutralidade e universaldiade heterossexual.
É preciso, então, fazer uma espécie de etnografia da dominação (CURIEL, 2010), para delimitar o que não tem limite: pensar os discursos e as práticas corporais e cinestésicas que produzem a identidade heterossexual enquanto corpos específicos e marcados e que podem ser estudados na sua diferença, nas suas especificidades.
Ao falar sobre heterossexualidade estamos pensando em um sistema de sexo e gênero tal como proposto pela antropóloga Gayle Rubin(1975), segundo a qual, no ocidente, ocorre uma normatização dos corpos que produz apenas dois seres inteligíveis socialmente, cujas características seriam opostas e complementares: homem e mulher heterossexuais. Apesar de não utilizar a categoria cisgêneros, termo criado apenas mais recentemente, o que Rubin parece articular é justamente que essas duas possibilidades de gênero são produzidas como inescapáveis, algo muito próximo do que é chamado hoje de cisgeneiridade compulsória: a obrigação de obedecer às espectativas hegemônicas de identificação do sujeito com o gênero com o qual foi designado ao nascer (MOIRA, 2017; BAGALI, 2016; KAAS, 2016).

Trata-se de um esforço de uma teoria sapatransbicha/cuir da cinestesia e da história da dança pensada aqui enquanto coreografia social, conceito do pesquisador americano Andrew Hewitt(2005) que nos parece tentar desfazer justamente a separação absoluta entre as chamadas danças cênicas e sociais e o cotidiano.

Instituições
  • 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Eixo Temático
  • Corpo e Política: implicações em modos de aglutinação e criação em dança
Palavras-chave
Dança
heterossexualidade
Gênero
Coreografia Social